Os meninos sujos, a estrada e o poema.

Havia morcegos, destes que atazanam o juízo às cinco da tarde, atravessando a pista e galhos secos caídos na estrada de barro batido. Cercas ao lado, madeira velha, arame e muita ferrugem! Casas assentadas a mãos nuas com o tal barro da estrada, velhos que se balançavam em cadeiras de cipó feitas em madeira de lei e havia meninos sujos, como havia! Havia meninos sujos e barrigudos com marcas de secreção no rosto e cabelos desarrumados em cabeças que coçavam constantemente, retendo firme em uma das mãos a única posse de suas vidas: um boneco qualquer, tão sujo quanto, sem um dos membros inferiores.

O painel antigo e ressecado quase saltava dentro do carro, os bancos sujos sacudiam quase soltos e uma camada de poeira me envolvia dificultando as manobras! Me lembro do arrependimento que tive por não ter jogado na loto no início da semana e por ter discutido com algumas pessoas. Lembrei de passagens rápidas da minha infância: das brincadeiras nos terrenos baldios, das feições bravas dos avós após uma traquinagem e do medos, principalmente dos medos, medo do assobio do vento, medo da coruja ´´rasga mortalha“, medos de morte!

Lembro-me, e era isso que mais me assustava, de ficar pasmo por notar, com tal riqueza de detalhes, aquela paisagem pela qual eu passava com tanta rapidez. O câmbio havia travado e eu não conseguia reduzir; o freio, pedal cujo pisão já não desacelerava o veículo, estava inutilizado e o acelerador permanecia, por pura teimosia, engatado não sei de que forma na sua máxima extensão sem voltar ao normal… Uma sensação de que aquela estrada estava no fim me tomava com pesares e angústias!

Eu podia ouvir o motor velho numa rotação de máxima potência, ouvi pequenas explosões na descarga e a pressão da água fervente no radiador! passei a sentir, de súbito, um gosto de ferrugem na boca e a escutar um zumbido fino e agudo que me embaralhava o juízo… O cinto, no pescoço rossando, incomodava; o sol do fim da tarde, que parecia projetar todos os raios exclusivamente no meu rosto, incomodava; a boca, cada vez mais seca, o intalo na garganta, a palpitação acelerada, a respiração ofegante, a secreção no rosto das crianças, o sol, o zumbido, a ferrugem… Fecho os olhos e sinto um forte impacto! Por um ou dois minutos que mais pareceram duas horas lutei contra minha própria loucura: cercas rodando, cerrado rodando e um zumbido mais forte era acompanhado agora de dormência nas pernas, dores nas costas e um latejamento incômodo na nuca. Barulhos desconexos: som de pessoas falando, de três ou quatro musicas tocando, e um gruninido ou rosnado de animal, não sei precisar muito bem! Consigo então um segundo de lucidez e, ainda sentado no carro, abro os olhos e vejo um menino de cabelo assanhado, mãos sujas e secreção a escorrer pelo rosto, sussurando duas vezes para mim e na terceira vez gritando com voz estridente e fina:

— Ele tem que correr!

— Abraão precisa correr!

— A manada está chegando! Você precisa correr!

Desato desesperado o cinto, empurro as ferragens que impediam a abertura da porta e saio correndo com a nuca a latejar. Já era noite, terra seca, fohas secas, galhos secos, árvores secas, todas me pareceram em algum momento sussurrar:

— não pare Abraão

— não ouse parar Abraão

— Abraão! não pare!

Lugar assustador, meio do nada, terra de ninguém… Como podem árvores em sussurro falar, folhas em sussuro falar? E galhos? Como podem galhos secos falar? Foi pensando nessas coisas, num susto quase mortal, que parei de correr: ele estava ali! Ali na minha frente, o menino de cabelo assanhado, de rosto sujo e com seu brinquedo quebrado na mão:

— pare Abraão!

Disse ele em tom de órdem.

— meu nome não é Abraão.

Disse eu em tom de hesitação pela estranheza da situação, mas ele insistiu:

— chega!

E começou a recitar um poema que não consegui mais tirar da cabeça:

A manada assasina mata em tal floresta densa, mas de fatos a segredos: toda folha conta, qualquer dos galhos mente. nenhum dos homens pensa?

Ingênua Mente

A manada assassina

mata em tal floresta densa,

mas de fatos a segredos:

toda folha conta,

qualquer dos galhos mente.

Nenhum dos homens pensa?

As presas imprudentes correm sem saber porque

não desvendam, em meio tempo, o seu fim imediato

e correm, apenas correm, até que o passo atrase o dorço

e morrem se não correm de quem caça a forte faro

O lastro falho e curto

já revela o fim latente

não há galhos, selva ou centros

são mentiras, são alentos

que devoram a quem sente

são só contos de um sonho,

são só sonhos de uma mente.

Acordei atordoado sem conseguir parar de repetir essas palavras! Esse sonho tem sido recorrente das mais estranhas formas possíveis: ora como pesadelo atordoante, ora como calmo passeio pela mata… dessa vez não foi só um calmo passeio, nem talvez tenha sido apenas um sonho… vai saber o que a mente, à noite, esconde em segredo:

são mentiras, são alentos

que devoram a quem sente…

são só contos de um sonho,

são só sonhos de uma mente?

italopirez
Enviado por italopirez em 13/02/2011
Código do texto: T2790022