Surdez
E está alí, jogado ao canto. Eu olho e torço o rosto, remexo as feições, me indagando sem dizer uma palavra com que roupa você estaria se fosse menos digno das que usa agora. Você começa a virar idéia. Vou me inclinando na sua direção, não percebo. É quase um deslize, um passo aqui e outro acolá, uma dança sem coreografia e sem professor. Vou chegando mais perto, eu não noto, não acho que quero – só acho. Os passos me vacilam e de certa maneira me enganam, eu nem queria estar assim tão perto. O gosto da bebida me escapa como o dinheiro e eu olho pra você. Não vejo nada, não percebo nada, você nem se mexe. Me lembra o vidro, o que me lembra que posso quebrá-lo em vários pedaços, você vai fazer barulho mais logo silencia – é conformista e brasileiro. Me livro dos sapatos, e descalço me sinto mais apto à dança e à proximidade, o seu rosto parece mais discernível em meio aos tantos que te rodeiam. Você começa a virar prosa. Eu me sento porque é educado e porque os sapatos estavam apertados, meu rosto te cumprimenta mas eu não sei e não quero saber teu nome. É confuso por natureza. Eu te entendo e te discurso, te espalho na mesa com os olhos, tento entender o que diz mas no fim eu não ligo. Você lentamente vira um tanto quanto irrelevante. Eu olho pros arranjos nas mesas e começo a reparar na falta de beleza do ambiente decorado para ser bonito, olho pro seu rosto e percebo a mesma coisa – mas vale o esforço. Você ainda mexe os lábios mas eu estou surdo pras tuas besteiras, estou surdo pras tuas teorias de gênio adolescente. Recomeço com a mão fechada sobre a outra, meu colo vai virando um abrigo. Você começa a virar poesia. Descanso, não me entendo e sinto uma vontade grande de ir embora. Você ainda está falando, você ainda está com os olhos tão irritantemente piscantes que eu me pergunto se você tem conhecimento das bobagens que diz, porque eu não tenho. Eu te tento e te passo pelos cantos do lugar, você me pede pra dançar. Sou acometido de um acesso de tosse, espirro e me ponho de novo à cadeira, é claro que era uma mentira. Minto para você com a mesma facilidade que você pensa que consegue dançar. Te arranca uns passos feios e iguais aos de todo mundo, a moça com o vestido azul se destaca, sabe o que faz com os pés e contém as mãos, os olhos fechados me provam que ela realmente não se importa com a atmosfera do resto – tudo tão cinza pros meus olhos. Eu te olho de novo, você tinha acenado. Não via outra razão pra dar-te atenção, não te via e não precisava te ver. Era tão imensamente desinteressante naquele segundo pungente que meu rosto pendia para o lado. Eu queria ir embora. Você começa a virar música, e felizmente acaba rápido.