O hollow e os sonhos.
Ele caminhava taciturno, esguio e elegante, meio a densa rua povoada de sonhos e planos, com a cabeça alta. Talvez ele também estivesse a sonhar, como fazia antes, imaginando-se longe de toda aquela agitação da cidade. Com o passar dos anos acostumara-se com a rotina da cidade, porém, angustiadamente seu coração lembrasse-se da infância, na fazenda do avô, onde ele realmente foi feliz, e sobre dias de sol e noites de lua sua alma tanto sonhou, tanto se aventurou.
Em uma oportunidade, o garoto que hoje se parecia com um Hollow, enfiado durante quase dois terços do dia em um escritório, correu sozinho, na ânsia de refrescar o corpo, e, sobretudo a alma, em direção a um rio caudaloso e tranquilo.Lá, banhou-se por longas horas, e enquanto relaxava seu corpo nas águas levemente geladas, olhava para o céu, vendo os pássaros, saindo da água, viu-se cansado, dormiu.
O mundo agora já não obedecia às leis da física, o relógio não era mais senhor do dia nem da noite, e a história, que já era, é e continuará sendo longa, também deixara de ser, ela era agora instantânea. As pessoas voavam, amavam, não precisavam de luxos, nem mesmo trabalhar, e não doía lembrar-se das guerras que há muito haviam se encerrado. Não havia mais sonhos, e esses também não eram mais necessários, a vida agora era completa, feliz, cheia de recompensas, pelas quais nenhum sacrifício era exigido.
O garoto sorria de olhos fechados, e sorria também o Sol, enquanto o vento acariciava, com certa inveja, a doce face do menino adormecido. Os minutos iam passando, leves, sem súplicas ou agradecimentos, apenas iam levando consigo o prazer gratuito e espontâneo do sorriso provindo do profundo sono do menino.
As águas calmas dos oceanos misturavam-se com as dos rios, e essas se misturavam com a terra, não eram doces nem salgadas, não eram claras nem escuras, eram apenas águas, prontas para saciar a sede de todos os homens. Os animais procriavam livremente, não corriam riscos de extinção. Os vegetais cresciam vertiginosamente, jamais faltando, fosse no quente inverno ou no congelado verão, sim, eram assim as estações, tudo trocado.
Apontavam 8 horas da manhã no relógio fixado na parede do escritório, e Daniel havia chegado no exato horário mais uma vez. Sentou-se em sua mesa, após cumprimentar a linda secretária, que por alguma razão decidira ir com o cabelo solto, revelando lindas madeixas onduladas, antes escondidas pelo coque. Em frente a uma grande pilha de papéis, sentiu-se fatigado, algo muito anormal, já que tinha sua rotina na palma da mão, inclusive a rotina do sono, essa, aliás, que deixara de ser visitada pelos sonhos. Daniel achava que sonhar tirava as forças do despertar. Olhou para o lado, vendo que as persianas estavam fechadas, incomodou-se, e num súbito e incomum impulso as abriu. Por uns instantes, enquanto subiam as persianas, sentiu no peito uma leve aceleração, a qual logo se desfez, verificando ele que além da janela havia uma paisagem dura, inflexível, cinza, tal qual a rotina a qual ele seguia com afinco, porém sem amor.
O Sol de repente esfriou-se, estranhando o garoto que poucos minutos atrás tinha 12 anos, e que era agora um homem, pelado, com cerca 25 anos de idade, mas com o mesmo sorriso gracioso desenhado na boca. Havia se passado meia hora, um pouco menos talvez, e o rio corria tranquilo, bem como o tempo, sem pressa e sem atraso. O homem, deitado na grama, mexia-se calmamente, encaixando o corpo no chão disforme. Os olhos, mesmo fechados, pareciam sorrir ao mesmo tom da boca, e com leves piscadelas, parecia, ao menos para o Sol, que assistia sozinho àquela cena, dar indícios de um sonho, ao qual era atribuído pelo Astro Rei, a qualidade de lindo.
O mundo esquecera o significado de várias palavras. Ódio, medo, rancor, agora não eram mais lembradas nem ditas. A história, que agora mostrava apenas o presente, não podia, ou não queria mais essas palavras em nenhuma parte da mente humana. Não se escrevia mais, não se lia mais, todos lembravam, todos discutiam, todos conheciam, todos aprendiam uns com os outros, em uma comunidade onde todo o conhecimento parecia pertencer a uma única mente, a qual, deveria, para ter tal poder, ser perfeita por excelência.
O dia prosseguia lento, pesado. Ainda eram 9 da manhã, e apesar da longa jornada à frente, Daniel não se mostrava cansado ou desmotivado. Ele trabalhava com os olhos apontados para um único ponto, como se sua mente focasse-se não no trabalho, mas em algo tão distante que nem seu antigo professor de astronomia poderia enxergar com sua velha luneta. Apesar de ativo, Daniel parecia estar vazio, com o coração pulsando entre 20 ou 30 batimentos por minuto, se é que isso era possível. Na sua mesa não havia sequer um objeto de decoração, nada que lembrasse quem ele era, ou quem ele fora, no entanto, todo aquele ambiente impessoal desse uma grande amostra de quem era, ou de quem Daniel se tornara.
Ar limpo, pássaros cantando, as tartarugas andavam tranquilas pela praia, sem se importar com as pessoas que ali se banhavam. A terra havia nascido de novo, e tudo era paz. Já não fazia mal se expor ao Sol, já não havia lixo que degradasse o planeta, e todos, dotados de pura inocência e amor, andavam a seu prazer, como bem queriam. Uma única regra regia o mundo, e tinha um nome fácil de pronunciar, uma palavra tão dita em outros tempos, mas que até aquele tempo nunca fora tão bem entendido, essa regra era o amor. Enquanto se amassem os homens, os animais e toda a natureza inanimada, estaria o mundo seguro, leve, sem passado nem futuro, mas com um presente lindo e eterno.
Transcorrera-se até então uma hora, o homem dormia ainda profundamente, e com certeza ainda sonhava, de fato parecia voar. O Sol, constante, velava o sonho daquele homem desconhecido, com uma alegria irradiante, como se o sonho por aquele sonhado reservasse algo bom também para o próprio Sol.
O relógio marcou 12 horas, com pouca fome, Daniel tirou da sua pasta dois sanduíches de atum, os quais seriam o seu único alimento pelas próximas 6 horas. A secretária do escritório almoçava junto com ele, e naquele dia lhe ofereceu um pouco do seu suco, Daniel hesitou, mas acabou aceitando. Ele não era de muita conversa, mas notou como estava belo o cabelo da moça, ondulado e solto, com um aspecto muito natural. Enquanto comentava sobre o cabelo da moça, por alguns poucos minutos, os únicos em várias semanas, o sorriso instaurou-se em seus lábios. Cerca de meia hora depois ele retornou para o trabalho, e mais uma vez estava sentado, com os olhos fixo no nada, como um hollow, sem nada pensar, sem nada sentir, apenas movido pela rotina.
A tecnologia havia desaparecido. Já não se usava telefones, computadores nem televisores. Os aviões eram agora santuários para pássaros, e não se viajava mais de carro, nem de moto, nem de navio, esses ficaram apenas como relíquias de lembranças distantes do velho mundo. O homem falava pelo pensamento, todos falavam uma única língua, com um campo semântico de tal vastidão, que, nem mesmo o mais difícil dos conceitos passava sem uma formulação verbal simples e concisa, ou complexa e explicativa, conforme o caso.
Não havia mais cidades, nem países, agora o mundo era um só, nem grande, nem pequeno, apenas completo. Era conhecido por todos um garoto, o qual, mais que todos os outros homens, voava mais alto, falava de forma ímpar, e tinha um brilho tal nos olhos, que podia ser confundido com o do Sol. Ele parecia amar o mundo, de maneira tal, que superava o amor de todos os outros humanos, seu coração pulsava com uma enorme força, de característica tão peculiar quanto a força que fazia aquele lindo e perfeito mundo funcionar.
Daniel finalmente olhara para o relógio, tarefa realizada por ele uma única vez no dia, por volta de meia hora antes do fim do expediente. Seu trabalho nunca ficava atrasado, seu comportamento metódico permitia-lhe ser tão eficiente quanto uma máquina. Verificando que se aproximava a hora de ir pra casa, tratou de traçar o plano de trabalho do dia seguinte. Começou fazendo um fichamento breve das atividades previstas, delimitando o tempo para a realização de cada uma, e manejando o tempo restante para poder dar contas das pendências imprevistas.
Em três horas o Sol não percorrera a distância que percorreria em outros dias, havia estagnado, e com grata satisfação ficou a velar o sonho do menino que virara homem. Esse agora dava sinais de acordar, aos poucos ia estirando pernas e braços, abria a boca, cerrava os olhos enquanto bocejava. O Sol, tranqüilo, ainda ficaria ali, esperando até que o homem se levantasse.
O radiante garoto estava há alguns dias com os olhos voltados para o céu, inerte a tudo que acontecia a sua volta. Seu olhar, sem o mesmo brilho de antes, parecia agora denunciar uma mudança, em algum lugar desconhecido até mesmo por seu sensível coração, que de alguma forma seria capaz de destruir aquele mundo. Muitas pessoas o perguntaram o porquê de seu estranho comportamento, e ele apenas respondia que sentia frio, mesmo agora no mais rigoroso inverno, e que por dentro estava sentindo um grande vazio, algo jamais visto na nova “história” daquele mundo. Em pouco tempo o céu perdeu a tonalidade azul, e foi ficando cor de baunilha, e ao longe, se podia ver o mar, pouco a pouco, ficando revolto.
Daniel aprontou a última ficha, e organizou tudo em um classificador, de posse de sua pasta, aguardou que a secretária saísse pra que ele pudesse trancar a porta. A moça passou por ele, balançando os cabelos lindamente, e exalando um perfume agridoce, tal qual os da aragem da fazenda de seu avô, com a chave na mão, a 4 ou 5 centímetros da fechadura, ocorreu-lhe a lembrança de sua infância. Lembrou-se de suas corridas até o Rio, e das horas que passava sonhando. Não se lembrou, entretanto, com muita clareza do sonho, e nem poderia, após tanto tempo imerso naquele mundo, mas sentiu a sensação que seus antigos sonhos o causavam.
Repentinamente, diante dos olhos do garoto, passaram dois aviões, e no mar revolto alguns navios percorriam distâncias inimagináveis para aquele novo mundo sem fronteiras. O garoto, com medo, pensou em voar, e notou com muita angustia que já não o podia, correndo, foi em direção a sua casa, e tentou atravessar a rua, mas não pôde, o trânsito de carros era caótico, e seu pulmão agora sufocava com os gases. Diante da triste e angustiosa realidade, o garoto caiu no choro, até que sua cabeça doeu, então, à beira-mar ele adormeceu.
No seu sono profundo, sonhou, sonhou com o homem à beira do rio, e notou que ele despertara de um sono longo e profundo, e que o Sol que o vigiava agora ia se escondendo num horizonte muito, muito distante. Sonhou com Daniel, pôde ver a lembrança de seus próprios sonhos, quando então notou que Daniel havia por fim trancado o escritório, e punha-se a caminhar em direção ao ponto de ônibus. Sonhou mais uma vez com seu antigo mundo maravilhoso, e chorou no sonho, por que sabia que aquele mundo não mais existia, e quando o relógio, que agora, como antes, e não mais como fora um dia naquele lindo mundo ,era o senhor da vida, marcou 7 da manhã, acordou o garoto, acordou Daniel, notando que nada mudara, e que os carros ainda provocavam congestionamento em frente à sua casa. Por fim, vazio de sentimentos, como um hollow, pegou sua pasta, trancou a porta e foi para o escritório, onde quase nenhum elemento podia-lhe converter a vida, exceto por um, a secretária, que nesse dia, estava usando coque no cabelo, como em todos os outros, bem diferente do que fora no sonho da noite anterior. Será que algum dia ela usará novamente os cabelos ondulados?
By Helio Pereira.
27 de maio de 2010