A VIAGEM
Era sábado e Ferreira estava na rodoviária de Tobias Barreto para fazer o que sempre fez aos sábados durante estes últimos 30 anos. Ferreira trabalhava para a Companhia de Água e Esgoto, e morava em Tobias há trinta anos. Casou com uma moça da terra e nela ficou; fez filhos, criou-os e nunca deixou de jogar dominó em Riachão, sua terra de origem. De Riachão o rapaz nunca se esqueceu. Riachão é uma cidade pequena no centro do sul do estado de Sergipe Del Rei na divisa com a Vila de Campos. A torrezinha da Matriz se avista de longe quando nos aproximamos da pequena cidade da família Dantas. Não sei muito falar desse povo, mas, dizem os antigos, que foi gente muito grande nessas terras de abacaxi doce e bom. Ferreira comprou sua passagem e entrou no ônibus. Este vinha da Bahia às duas da tarde. Era o que fazia a linha Tobias/Aracaju às duas e quinze. O ônibus só atrasava quando a estrada de Itapicurú estava ruim, caso contrário, era muito pontual. Ferreira ao entrar nem percebeu que o carro estava quase vazio, havia poucos passageiros. O costume era nem achar vagas, os carros ficam em menor quantidade no sábado. Um senhor de cabelos grisalhos, pele branca escandinava, olhos azuis e feições nórdicas senta no banco, abre a janela e observa o movimento no Terminal Rodoviário da antiga Vila de Campos. Naquela época a rodoviária situava-se próximo a ponte que divide os dois estados, Sergipe e Bahia. As pessoas colocavam caixas no ônibus, outros conversavam coisas triviais, e assim a cena corria como se tudo que vemos fosse verdade. Tudo estava no seu lugar. E Ferreira também. O rapaz de Riachão pegou no sono esperando o carro sair. Quando o ônibus inicia seu movimento de manobra para sair do terminal Ferreira acorda e volta sua atenção para as pessoas que estão no curso do ônibus, nas calçadas, em frente às lojas. O mundo parece muito normal. Sua pequena viagem rotineira havia iniciado. O interior do veículo fora tomado por um silêncio não habitual. Ferreira olhou as poltronas até onde a vista deu para ver, a quantidade de pessoas era muito pouca. Pensou consigo: “Milagre, pelo menos durmo uns vinte minutos antes de chegar a Riachão”. Fechou os olhos e dormiu. Mas desta feita seu sono foi muito rápido, pois o carro parou no posto de gasolina na saída da cidade para entrar uma senhora com um tabuleiro de acarajé. A mulher põe as coisas com a ajuda do cobrador e a viagem reinicia rumo a Aracaju, e no caso do nosso Ferreira, a Riachão. Todos estavam sentados, a estrada estava boa. O dia estava claro. E ferreira estava cochilando com a cabeça encostada do lado direito do carro, o lado que à tarde faz sombra.
- Meninos venham para casa! Gritou dona Franquislane. As crianças correram para dentro de casa, e Franquislane fechou à porteira; era a hora do almoço.
- Meninos, lavaram as mãos?
- Não, mãe, não! Gritaram de volta a meninada.
- Então corram e lavem-se, é mal feito comer com as mãos sujas. A turma toda foi e voltou em um raio. Em cinco minutos todos rezavam a Ave-Maria com a senhora de 45 anos chamada Franquislane. Esta era uma mulher maravilhosa. Bisneta de holandeses que vieram para Sergipe; Franquislane tinha muito para ensinar a seus filhos sobre como viver a vida na prudência dos sábios. Dona Franquislane era da Igreja Luterana, como esta não tinha em Riachão; ela frequentava a Igreja Católica.
- Agradeçam a Deus pelo pão e comam! Disse Franquislane.
O ônibus parou perto do “pau preto” para um homem entrar. Era um senhor de chapéu preto com a aba um tanto torta na frente. O homem tinha a cara fechada e não saldou a ninguém; ele entrou e sentou sumindo em sua poltrona. O motorista acelera e acorda novamente a Ferreira. Este abre os olhos e avista a Serra da Praça do seu lado direito. Ele olhou para seu relógio e percebe que havia se passado mais de uma hora e nada de Riachão. Ele não havia chegado se quer ao entroncamento do Campestre. “O que foi, será que o relógio está parado ou algum problema?” Pensou Ferreira. Olhou para o chão, coçou a testa, encostou a cabeça na poltrona, e se entregou novamente aos cuidados do motorista baiano que iria cruzar Sergipe de sul a norte. A viagem prosseguiu pelas estradas de Campos de Nossa Senhora Imperatriz.
- Você não sabe montar Ferreira? Nem sabe! Disse Everaldo, o filho do marchante, seu Gracindo.
- Eu sei! Eu sei! Sua baleia gorda! Gritou Ferreira.
- Baleia gorda é você, cara de coruja! Você parece uma tapioca, seu filho da peste!
- Filho da peste é você! Psiu! Silêncio! Seu pai vem aí! Disse o menino Ferreira. Os dois meninos que conversavam na baixada perto do riacho que cruza a estrada de acesso a Riachão se abaixaram atrás da moita de capim. E veem as botas do homem que passava por eles. Nem um dos dois viu o rosto do cidadão.
- Quem era? Perguntou Everaldo.
- Não sei. Disse Ferreira.
- Eu vi as botas e elas estavam sujas de lama. Não sei, não. Continuou o menino. O ônibus passa por um buraco no povoado Saquinho. Com a trepidação do veículo, Ferreira acorda do seu sono. Passa a mão na baba que caía pelo canto direito de sua boca e ver que o carro estava muito atrasado. “Puxa, ainda estamos aqui?” “Deve ser meu relógio”. O homem nem se deu conta que o sol estava começando a enfraquecer. O carro pára novamente e a mulher com o tabuleiro de acarajé desce em Tanque Novo.
- Espera aí, rapaz, deixa eu pegar aqui minha sacola de feijão! Disse a mulher irritada.
A mulher se ajeitou para descer carregando além de sua barriga, o tabuleiro de acarajé. Com certo esforço a pobre senhora desce do ônibus e encontra-se com parentes no beiço da rodagem. Ferreira retorna a posição de antes e pega no sono dizendo para si: “Desta vez quando eu acordar, estarei em Riachão”.
- Ferreira, vá comprar pão!
- Vou não, mãe, vou não! Mande Rubens!
- Menino, você sabe que Rubensvaldo está estudando, não pode ser atrapalhado, vá você, Ferreira! Pelo amor de Deus, seu danado! Ferreira foi comprar os pães. Depois aguardou sua mãe chamá-lo para o jantar.
- Mãe, onde está pai? Perguntou Rubensvaldo.
- Num sei. Ele foi para a malhada e até agora nada.
- Ele deve estar tomando umas pingas antes de voltar para casa. Disse Rubensvaldo esclarecendo as coisas. Ferreira e seu irmão mais velho não se comunicavam bem, a diferença de idade não deixava. Ferreira via o mundo pelo buraco da fechadura e Rubensvaldo pelos livros. Os dois foram vencidos pelo sono e foram deitar.
- Seu Ferreira! Incomodei-te?
- Não, absolutamente, não. Eu não sabia que estava na viagem. Respondeu Ferreira.
- Rapaz, eu estou precisando muito que você me tire uma dúvida. Disse o senhor de cabelos crespos ruivos e barba curta com um bigode fino no rodapé.
- Pois não. Continuou Ferreira.
- Tem um bode em sua terra que o povo adora. Não é?
- Sim. É o bode Bito.
- Por quê? Como isso aconteceu?
- Rapaz, o bode, sem para que, começou a acompanhar os enterros, por esta causa, as famílias de Riachão passaram a ter o bode como um parente.
- Que coisa esquisita? Mas existe algum motivo que explique isso?
- Levaram o bode para vários psicanalistas e psicólogos e nada. Dizem que pode ter sido apenas resposta mecânica do animal. Algumas vezes quiseram levar o bicho para rituais de magia negra por acharem que o pobre estivesse emacumbado. Enquanto a conversa continua, a viagem segue seu destino. O homem levantou-se e retornou para o seu lugar.
- Ferreira, levante e vá para o grupo! O rapaz achou a voz de sua mãe um pouco rouca e pergunta:
- Mãe, por que você está roca? Por que seus olhos estão inchados? A bisneta de holandesa não se entregava nunca.
- Deixa de frescura moço, levante e vá estudar! Vamos, deixa de moleza! Ferreira levantou-se de sua caminha e foi tomar café, logo em seguida foi para a escola.
Todos estavam descansando no ônibus quando se ouviu um barulho de ferro batendo no outro. O ônibus quebrou o câmbio bem perto da ladeira a um quilometro de Riachão. “Agora não!” “Será que hoje não tem dominó?” Mesmo tão perto da cidade, o homem resolveu esperar o conserto. Pegou novamente no sono.
- Oh, Bito! Oh, Bito! Vá buscar meu pai! Dizia o menino Ferreira subindo a sinistra ladeira do cemitério. O bode continuava na rodoviária e pelo posto de gasolina como era seu costume, nem dava atenção ao moleque. Aquela fora uma manhã muito triste para o jovem Ferreira. Por volta das treze horas saiu a notícia que seu pai, Francisco, havia sido encontrado morto e ninguém sabia a causa da morte. O homem foi levado para o necrotério em Aracaju para perícia. Dona Franquislane chorou amargamente a morte de seu marido. Desde então, lhe caiu o semblante. Até hoje Ferreira vai a Riachão para ver sua pobre velha e jogar dominó. A coitada ainda evita falar sobre o assunto.
- Se não fosse o bode, num sei o que seria de mim! Como assim Franquislane? Perguntou Gorete sua amiga.
- A inocência do animal, e como ele se aproximou de todos aqui. Mulher como é que esse bode sabe que Francisco morreu?
- Num sei mulher, será isso coisa ruim, não?
- Bem Gorete depois que Bito chegou o povo todo se aquietou. Encerrou a conversa sobre o bode, dona Franquislane. De fato o bode havia chegado e logo procurou um canto e ficou em sentinela até o raiar do dia. O caixão de seu Francisco chegou às oito da noite. A lua estava alta e todos da cidade foram curiosos ver Francisco morto. Não se sabe se foi cobra ou o vento. O caixão fora aberto, e não havia marcas no corpo. O homem estava perfeito.
- Mulher, que homem bom! Seu Francisco, partindo tão cedo! Comentou dona Tereza da mercearia.
- Pois num foi comadre, seu Francisco! Coitada de Franquislane. Acrescentou dona Maria.
- Que nada mulher, o homem deixou Franquislane em uma boa. Soube que o homem tinha dinheiro guardado. Mulher respeite o defunto!
Franquislane havia posto os meninos para dormir. Seu intuito era não deixá-los ver o pai morto. Mas menino é menino. Da cama de Ferreira podia-se avistar seu Francisco morto no caixão. Via-se sua boca e a silhueta de sua face. O caixão não era o melhor, mas, um belo caixão. Ferreira olha seu pai morto gretando por entre as cobertas. A visão de seu pai o deixou com medo. O menino entrou em estado de choque. O rapaz tremia na cama como vara verde e ninguém percebeu nada. Naquela situação o menino pega no sono. Ele sonhava com seu pai vivo e que ele corria por um campo muito bonito e limpo. Não havia espinhos ou pedras. A alma do rapaz, finalmente, descansa junto com seu pai. Mas sem razão alguma, a figura paterna se transforma em um monstro com três cabeças. Seus dentes eram tão afiados que quebravam barras de ferro. Ferreira acorda assustado e suado. As pessoas estavam se preparando para a procissão fúnebre. O bode ia à frente chefiando o cortejo, logo atrás, o caixão e os parentes chorando em grupo. O desconsolo era geral. O cortejo sai da casa de dona Franquislane que ficava no pé da ladeira da matriz e passa na Igreja. Ali, estava o padre Paulino, um bom rapaz, que sentiu o chamado do Senhor ainda muito moço. Ele reunia seus colegas debaixo dos pés de manga para brincarem de rezar missas quando era menino da idade de Ferreira. Logo depois foi para Recife estudar teologia, e voltou padre. O bode passa a porta principal da igreja, em seguida, o caixão entra e pára diante do homem de Deus. O padre dá as últimas graças a Francisco e o cortejo desce a ladeira até a estrada do cemitério que ficava em outra ladeira que dava para a estrada de Lagarto. O povo vai se arrumando até que o bode entra no campo santo. Enterraram Francisco, e o bode berrou descendo a ladeira rumo ao posto de gasolina.
- Ferreira! Ferreira! Chamou o motorista.
- Ferreira! Ferreira! Chamou o trocador.
- Ferreira!!! Gritou o motorista.
- Ferreira!!!! Gritou mais forte ainda o trocador.
Nunca se sabe quando a morte vai chegar. Ou onde vamos chegar com ela. No enterro de Ferreira não teve bode Bito. Foram poucos amigos. A maioria era do dominó.