ROMANCE NO TRABALHO
Quero contar essa história contando como nos conhecemos. Eu e Clara. Estava sem trabalho há um tempo e recebi um convite para ensinar no turno matutino em um curso preparatório para o vestibular. No primeiro dia de aula eu pude observar alguém especial. Que ela negue isso sei que é bom, pois sua humildade não requer títulos. Poe isso é mais especial pra mim ainda. E aos que a cercam, também compartilham, espero, da mesma opinião.
Fiquei prestando atenção nela, quando me perguntou de maneira a me pegar desprevenido, um assunto referente à aula do dia. Respondi mais ou menos da maneira que ela queria. Não sei. Mas esse fato marcou o meu dia. Deixou-o diferente.
No início, não tive uma boa impressão. Achei que seria problema. Graças a Deus que a primeira impressão nem sempre fica. E foi o que ela pôde me ensinar. Uma das tantas coisas que aprendi com ela. Que seria de mim? Desconheço. Conversei um pouco com ela e seu humor, sabedoria e humildade do tamanho do mundo permitiram que eu desfizesse o engano e acreditasse estar diante de uma pessoa muito especial mesmo, em aspectos que só mais tarde viria a conhecer.
Todos os dias eu doava um pouco do meu tempo para conversar com ela, e Clarinha, como gosto de chama-la, também fazia o mesmo. Descobri que pensávamos muitas coisas parecidas, tínhamos experiências um pouco diferentes, ou muito, em alguns casos, mas o “pano de fundo” era o mesmo.
Começamos a trabalhar juntos, numa parceria de completude um do outro. Ela, que via e ouvia com maior clareza, sentia as forças do universo muito melhor que eu, enquanto minha função era a de atirar na direção que ela me indicasse. Ah, você não deve estar entendendo nada. Explico. Trabalhamos no mundo espiritual combatendo as forças do mal, esses espíritos errantes que precisam de luz, as famosas assombrações, demônios e possessões que as pessoas falam e dizem terem visto. Quem nunca soube de algum fenômeno semelhante, uma casa que pega fogo, etc.? É disso que eu estou falando. Não maltratamos nem matamos. Até porque isso nem é possível e nem faz parte do nosso trabalho. Apenas mandamos as criaturas para um lugar de tratamento. Deixamos as criaturas inativas por um tempo e as mandamos para o hospital adequado. Mas isso talvez seja muito complicado de entender, então, basta que se diga que é tipo um exorcismo, para que o leitor entenda um pouco, mas não tem muito a ver com isso. Prossigamos que aqui ainda estamos às voltas.
Clarinha é tudo pra mim. São meus olhos e ouvidos, é minha pele. Eu sou os braços e a rapidez que ela precisa para neutralizar as forças que caçamos, pois ela não é mulher de armas. Dependemos um do outro, pois se não agimos com cuidado, há a possibilidade de falharmos e sermos derrotados. É um jogo de confiança em que a vida de um depende da vida do outro.
Estávamos numa dessas missões, quando aprendi uma belíssima lição, que mudou nossos rumos completamente. O meu e o dela. Era uma das tantas que havíamos empenhado, até então sem nunca perder ou ter prejuízos. Conto-lhes então.
Um campo deserto, ao lado de uma casa que diziam ser mal-assombrada. Havia por lá muitos espíritos, de pessoas que já faleceram em condições que não é possível que eu descreva, mas que se transformaram em sofrimento eterno. A maioria sequer sabia que havia mudado de plano, fazendo as mesmas atividades diárias, espantando os outros espíritos de lá, os mais fracos, por acharem que eram intrusos e para defender a casa, coisa que nós aqui também faríamos para salvaguardar a nossa. Para mim era uma missão de rotina, pois perdi a conta de quantas casas fizemos limpezas desse tipo.
Ficamos em posição de espera. Nos aproximamos devagar, conforme procedimento habitual. Eu preparei as armas e Clarinha já podia escutar as vozes e sentir o ambiente. Ela sempre ficou com a parte mais incômoda do serviço, que ficava toda carregada de energias desse tipo, as quais depois nós tínhamos de nos livrar. Nunca esquecerei a parceria que tivemos, e dela sei que muito fui beneficiado. Ela, a Clarinha, é dessas pessoas que são generosas e pacientes, que se entregam inteiramente ao serviço, sem medir as limitações. Dela eu nunca poderia me queixar. Veio até bem perto da gente um deles, ou melhor, alguns, porque era uma legião. Clarinha pediu que eu me preparasse, mas já estava com as armas em punho e os ouvidos totalmente atentos à voz dela, pois não ouvia os espíritos mesmo. Para mim era silêncio. Não devo ter me referido com justiça a respeito da voz dela. Se alguém já ouviu um anjo falar, deve compreender bem. Sua doce voz me prendia a atenção a ela, de forma que nenhum barulho, ainda que fosse dos espíritos, se eu os ouvisse, poderia desviar minha atenção. Era como um contrafeitiço, que garantia a eficácia dos meus tiros, ajudados pela poderosa noção matemática que eu sabia, para não errar nenhum tiro. Afinal, um erro poderia ser fatal, tendo em vista que estávamos abertos e suscetíveis a essas energias.
Alguma coisa se aproximava e parecia muito poderosa. Não sabia o quanto, pois não via ou ouvia nada, seque sentia. Mas desta vez eu me assustei, pois tive a sensação de sentir um frio no meu corpo, coisa que nunca tinha acontecido. Olhei para Clarinha e vi que ela estava assustada, olhos fixos num ponto do terreno. Ela nem precisou olhar pra mim para saber que eu estava observando-a. deu u tapa de leve em minhas costas e do jeito que estava disse-me para ter atenção, que, aliás, eu estava muito inquieto e que assim abriria a guarda. Eu sempre confiei nela e ela em mim. O rosto sério e sereno da menina Clara tinha um encanto que as palavras não poderiam descrever, por isso não farei isso aqui, porque não posso. Aos que a conhecem sabem razoavelmente do que estou dizendo. Ela transmite a todos seu encanto, segurança e sabedoria. Sua beleza é pra mim um mistério, que não tive permissão de descobrir.
Voltei a atenção ao ponto em que estava, quando Clarinha solta um grito e fica desacordada por um bom tempo. Foi uma luz muito forte que passou pela gente, muito rápido. Não foi culpa dela, que estava muito atenta, como sempre foi cuidando de mim, mais que eu pudesse notar ou cuidar dela. Errei o tiro, pois não teve tempo de me indicar a posição certa, mas não poderia errar, com a experiência que tinha. No segundo em que ela gritou, olhei para ela muito rápido, para ver o que tinha acontecido, mas retornei muito mais rápido ainda ao alvo, mas foi o suficiente para eu errar e ser atingido por aquela energia estranha. Fiquei com isso desacordado também. Não poderia imaginar quão ruim é a sensação de ser alvejado por essas más energias. Acordei primeiro, pois já que eu não tinha a sensibilidade de sentir igual à de Clarinha, também não poderia ser terrivelmente afetado, muito embora a sensação fosse muito desagradável.
Fico imaginando o que ela deve ter sentido todo esse tempo, sem nunca se queixar, sem querer desistir jamais. Olho pra ela e a admiro a cada segundo, com mais intensidade do que antes, e minha admiração cresce a cada dia. Não me separo dela nunca. Eu pensei que deveria protegê-la, pois ela recebeu a carga maior. Quando menos esperei estava de pé, e podia ver diferente, e ouvir também. Não sei se estava fora do corpo ou se era eu mesmo ali na matéria. Acho que ela me passou um pouco de suas faculdades, mas eu estava tão dependente e confiante nela, ou a força dela era tanta que não sabia disso. Clarinha é dessas poucas pessoas que existem e vivem ajudando aos outros, que transmitem o que sabem e o que tem, sem cobrar qualquer retorno por isso. Eis a minha admiração sempre maior.
Peguei a minha arma e tive o intuito de concluir o serviço, pois não sabia se aquilo que nos atingiu poderia voltar a nos atacar. Queria de toda a maneira proteger minha companheira de qualquer coisa. Sabe, não sei por que eu não fui tentar reanimar ou ver o que havia acontecido a ela, coisa que qualquer um faria, esquecendo o resto do mundo. Talvez fosse a confiança mútua que sempre tivemos, de dependência e proteção. Dessa vez eu estava sozinho, pensei, e precisava garantir nossa vitória para irmos para casa. Fechei os olhos e me concentrei, quando percebi que dava na mesma: não era eu, mas meu espírito que estava ali. Não procurei meu corpo. Olhei. Percebi que vinha uma luz muito forte em nossa direção. Atirei e caí, derrubado pelo tombo do tiro e dessa mesma energia, a qual eu não estava adaptado ainda e por isso fui novamente baleado. Desacordei.
Clarinha nunca havia sido derrubada antes. Até esse dia, não. Seria um sinal para mudarmos de rumo, para sairmos desse trabalho perigoso? Saberia mas tarde. Quando acordei, ainda mal, notei que uma luz muito ruim queria se aproximar do meu corpo, que havia sido lançado bem distante. Senti um mal bem grande na alma, uma coisa desagradável e indescritível. Estávamos cansados? Não sei. Era hora de parar, pelo jeito. Clarinha, sempre inabalável, eu nunca perguntei se ela queria mudar de vida, ela nunca desistiu de seus objetivos e missões. Acho que fui injusto com ela. Percebi que minha arma havia sumido. Estava na mão dela.
Todo esse tempo de trabalho e Clarinha nunca tinha atirado antes. Não sabia o peso das armas. Então eu me enganei, quando disse que não era ela mulher de armas. Deu o tiro de misericórdia, que era a última carga da arma. Eu estava aliviado do peso. Logo me senti forte.
Não passava pela minha cabeça que ela talvez observasse o jeito que eu trabalhava e aprender de primeira, pois que não errou o tiro, e salvou minha vida. Nunca me arrependi de confiar nela, mas não sei se em algum momento ela dependeu de mim para a salvação. Acredito que sim. Mas a gente se completava, tanto que eu sempre pude fazer o que ela sempre fez, com uma qualidade bem inferior, é verdade, e ela atiraria sem problemas, se precisasse, com margem de erro quase zero, ou nenhuma pelo que vi nesse dia. Não sei quando ela aprendeu a atirar tão bem quanto eu, sem nunca ter experimentado antes; também não entendo por que ela continuava comigo, sem mudar o posto, ou cobrar de mim coisas que eu nunca fiz.
Clarinha é pessoa que não exige mais que aquilo que podemos fazer, mas não digo que era relapsa ou descuidada, pois procurava manter-se atenta, e me repreendia quando por algum motivo eu desviava minha atenção por alguma bobagem, ou olhando para ela com admiração de sua beleza. Percebi que o corpo de Clara estava de pé ao meu lado, e num instante me vi junto do meu. Levante-me e verifiquei que ela estava muito bem. Eu não havia me machucado, a não ser pela queda, mas nada de sério. Foi a nossa última missão. Decidimos parar, pois percebemos que era um trabalho bem arriscado. Após a limpeza que fizemos em nós, fomos para casa. Terminava o dia e já nascia outro.
Aquela casa ficou em paz, e desse dia em diante eu não soube mais de outros casos de assombração pelas redondezas. Quis fazer uma poesia para Clarinha. Mostrei a ela depois. Saímos dessas aventuras, mas continuamos atentos. Ela me conta as experiências que tem e eu faço o mesmo. A minha confiança e admiração por ela crescem a cada dia, mas ai já é outra história.