Passeio pelo passado - parte 1

O relogio da catedral tocou três vezes naquela noite, então parou deixando apenas o barulho do ar percorrer num uivo em volta da casa da fazenda. Luce caminhou até o seu quarto, a barra do vestido imunda de lama. No rosto, a expressão de uma noite inesquecível.

— Já chegou querida? — perguntou a sua avó.

— Sim, não precisa se incomodar.

— Está bem, tenha uma boa noite. — ela assentiu e não mais questionou.

Luce passeou pelas escadas altas e então encontrou tateando em meio ao corredor escuro a porta de seu quarto, a maçaneta parecia não querer girar em suas mãos úmidas e cheias de medo.

O porta retrato gritou em seus olhos com a imagem de seus pais... ah seus pais, agora sabia toda a verdade e isso jamais sairia de sua cabeça, não a que se instalara hoje. Ela tirou as roupas buscando um pijama em seu armário e minutos depois deitou-se sabendo que mesmo que não pudesse acreditar, no dia seguinte, tudo estaria bem.

Antes disso...

As mãos de Andy passearam pelo volante do Ford que ele acabara de comprar. No passageiro, Meg folheava o último editorial de moda não muito atenta a música que tocava. A voz de Amy Lee parecia gritar as notas em seus ouvidos.

Atrás, Geena ouvia a última música das paradas enquanto Luce tentava desesperadamente ligar para Jamie, o seu namorado com quem brigara no dia anterior.

“Deixe o seu recado” à secretária eletrônica repetiu pela milésima vez com a voz de Jamie. “Jamie, estou indo para o parque que acabou de se instalar na cidade, vê se aparece por lá, estarei com Geena e os pais dela”, ela disse.

Luce ficara surpresa com as novas habilidades de seu namorado que nunca fora muito atento a tecnologia; secretaria eletrônica personalizada não era muito a sua cara.

— Desligado. — ela disse para Geena que olhara para ela atentamente.

— O QUE?

— DESLIGADO! — repetiu aos berros.

Geena tirou os fones de ouvido e então assustou-se com o volume da música que estava tocando. Não fosse o vocalista, ela não ficaria tão estarrecida.

— Pai! — ela disse. — Não vê que odeio essa banda?

Andy sorriu e deu de ombros.

— Ponha seus fones de volta e tudo ficará bem!

Geena revirou os olhos e então voltou sua atenção para Luce, segurada ao aparelho ainda ligado em suas mãos.

— Do que estava falando? — ela perguntou com a voz algumas notas mais altas do das que com frequência.

— Jamie não está atendendo o celular. Não queria deixar que ele ficasse sem saber para onde estou indo. Por isso deixei um recado na secretária eletrônica.

— Parque de diversões não é lá o que pode ser visto como uma traição Luce, e depois, a culpa por vocês terem brigado foi dele... Não acho que você deva estar fazendo esse papel de submissa, afinal, é seu aniversário e temos que comemorá-lo.

Luce sorriu. — Não quero comemorar meu aniversário, não esse em especial.

— Porque não? Porque Jamie não se lembrou da data ou porque está brigada com ele? —perguntou Geena tentando não soar tão alto para que Andy e sua madrasta ouvissem, mesmo que isso foi quase impossível graças a musica alta.

— Hoje faz dez anos que meus pais morreram e seis que estou sem eles. — Luce disse calmamente num tom conotativo de tristeza.

Geena compreendeu. — E dezesseis de uma vida muito promissora. — acrescentou tentando animá-la. — Parte disso significa esquecer os fantasmas do passado e não se importar tanto, afinal, estamos indo nos divertir e dezesseis anos não se faz todo dia.

Luce sorriu. — Concordo. — sua voz tentando parecer mais animada do que a pouco.

Parte de Luce estava triste e outra parte empolgada, embora todo esse ânimo fosse um pouco artificial em todo caso, talvez ainda, ele estivesse sendo abafado pela intensidade do ânimo de Geena.

— O que estão conversando garotas? — perguntou Andy. — Algo muito particular?

Andy tinha cabelos negros e corpo magro, muito mais jovem do que a sua idade estampava nos documentos oficiais, não fossem esses pequenos detalhes se passava facilmente por um jovem adulto. Os olhos negros combinavam com a pele parda igualmente a de Geena, sua filha que tinha cabelos medianos.

Luce tinha a pele branca e reluzente como à lua que protagonizava o céu dessa noite, seus cabelos eram claros, embora fossem negros e seus lábios rosados. Ela olhou para Andy pelo retrovisor e viu a sua expressão sarcástica.

— Nada demais pai. — disse Geena.

Andy sorriu e olhou para Meg. — Adolescentes sempre cheias de segredos.

Meg fechou o editorial e jogou no porta-luvas do carro.

— E hormônios a flor da pele. — adicionou rindo. — Não pude deixar de ouvir a conversa sobre namorados.

— Meg! — exclamou Geena. — É um assunto particular, não deveria ficar atenta as conversas alheias.

— Não me importo Geena. — murmurou Luce envergonhada. — Sério, mesmo...

— Naturalmente querida Geena, mas não acho que Luce tenha se importado tanto, ela mesma acabou de dizer.

Todos sorriram por um instante quando mais tarde chegaram ao local.

O céu limpo, estrelas brilhantes e uma brisa fraca não denunciavam nenhum sinal de chuva. O vento forte varria a areia formando pequenos redemoinhos que se desfaziam com naturalidade quando pequenas pedras batiam nas estruturas de ferro dando a impressão do tilintar de sinos.

Nas expressões — rostos alegres e vívidos em meio à algazarra interminável daquele que era um sábado tendencioso; um sábado de halloween. E isso significava muito tempo exclusivo para viver a vida como se deve, mesmo que não corretamente.

No alto, o cheiro de pipoca amanteigada gritava misturado a algodão doce, carne assada e maçã do amor.

Mais a diante: barracas, ciganas e sopradores de fogo...

Irrefutavelmente a imagem perfeita de uma noite promissora.

Eles só não sabiam que havia ali a presença de um telecinético e nem ao certo o que isso significava; talvez a minoria soubesse como Ben Carter, ou qualquer outro nerd que se visse no raio daquele ambiente — pessoas fanáticas por filmes de realidade fantástica e ficção cientifica.

A palavra aberração talvez soasse mais precisa em seus ouvidos, mesmo que não acreditassem muito.

***

Ele ergueu os ombros, os cabelos loiros balançavam de acordo com o vento, mas de onde estava, ninguém notara a sua presença.

— É ela? — perguntou o jovem que surgira sem que ele notasse. Ele tinha cabelos loiros porém mais escuros, embora suas aparências fossem quase semelhantes. Olhos verdes e claros e peles vívidas, brilhantes. Quase inumanas.

— Sim. — O jovem confirmou. — Posso sentir que sim.

— E então... O que acha?

— Não me parece perigosa como os pais, talvez até inofensiva... inofensiva demais!

O jovem de voz grave sorriu.

— Não seja tolo Stefan! Não podemos arriscar dessa forma, ou não vê que nosso alto nível de compaixão apenas nos tem dado dor de cabeça?

Stefan sorriu. — Ela nem se quer sabe dos poderes que tem! Porque a puniríamos sem que houvesse uma chance de provar ser diferente?

— Poucos telecinéticos tem controle sobre seus corpos, não lembra do último caso? Ou os alunos de um colégio inteiro estarem hoje mortos lhe parecem pouco? Tantas vidas... Não creio que seria diferente com ela...

— Também tivemos o beneficio da dúvida, por isso hoje estamos aqui...

O silêncio pairou entre os dois, então voltaram suas atenções para Luce e Geena.

***

— Está demorando. — reclamou Geena.

Eram filas cheias de adolescentes inexperientes que percorriam o estacionamento até o guincho onde havia uma moça vestida de heroína da Marvel, nada mais ridículo para uma mulher de aproximadamente trinta e cinco anos, pensou Luce. A “mulher maravilha” sorriu em meio ao caos e devolveu o troco para ela.

Do lado, Geena sorriu.

— Montanha Russa! — gritou com excitação balançando o vestido leve; Um tecido branco que combinava com a sua pele cor de canela e seus cabelos escuros.

Luce sibilou.

— Nunca! Nem pense numa coisa dessas.

Ela nem sabia ao certo o que estava fazendo ali. Da última vez em que seu estado emocional se alterara, quase houve um desastre e todos ao seu redor foram mortos. Ela tentava não pensar muito nisso e nem acreditar que poderia ser culpa sua. Era perigoso demais que fosse verdade. Mas isso parecia cada vez mais difícil de acreditar, especialmente quando acordava no meio da noite com as luzes piscando e a janela batendo num bang bang bang interminável.

— Porque nunca faz o que quero, Luce? — disse Geena fechando a cara. — Sempre vou para os lugares que você sugere, e nem estou incluindo o último, ou roubar o diário da ex de Jamie não foi uma das maiores provas de amizade que já fiz? — Geena corou o rosto e apertou os cílios buscando concordância na expressão temerosa de Luce.

Luce assentiu.

Elas haviam passado em frente aos carrinhos de bate-bate.

— Que tal esse primeiro? — sugeriu Luce.

Geena deu de ombros e saiu agarrada ao seu braço.

— Jamie não irá gostar nada de saber que vim para um parque de diversões sem ele. — disse Luce. — Não acho isso certo, mesmo que estejamos brigados e aliás, a culpa não foi dele

Geena não pode deixar de concordar..

— Não fossem meus empurrõezinhos, você não estaria namorando com ele hoje, portanto, exijo tempo exclusivo com a minha melhor amiga.

Luce e Geena trocaram um olhar de concordância e caminharam sem um rumo certo, apenas sabiam que estariam juntas. Parte disso, porque eram melhores amigas e inseparáveis.

— Está bem.

— Então isso quer dizer que sim?

— Não antes de passarmos pelos outros brinquedos. —disse Luce.

Um barulho estridente doeu em seus ouvidos, era vozes excitadas com a adrenalina que pulsava em suas veias, o perigo parecia algo bom para eles. Genna sorriu.

Fez uma expressão angelical. — Montanha Russa?

— Não antes de passarmos pelos outros.

Geena fungou. — Está bem, já entendi. — sua voz calma e paciente.

***

Próximo as filas de estacionamento, Andy sorriu, seus dentes reluziram sob as luzes de um poste amarelado, seus olhos avivaram-se.

— Porque não nos divertimos como todos? — ele perguntou para Meg. — Acho que as garotas devem estar nesse. — seus olhos apontaram para a montanha russa que passara próximo as suas cabeças em gritos eufóricos.

Meg vestida num jeans preto e colete, levantou-se do banco do carona e enfiou os polegares nos passadores de cinto.

— Não estou muito disposta, talvez seja o enjoou repentino. — ela disse. — Não sei se foi uma boa idéia acompanhar as garotas até aqui.

Andy franziu o cenho.

— Enjoou de novo? Da ultima vez que esteve assim... — seus olhos arregalaram-se derepente e sorriram incoerentemente.

— Estava grávida? — sugeriu Meg, não muito contente.

Andy caminhou até ela passando suas mãos ásperas por entre as mechas ruivas de seus cabelos longos e brilhantes.

— Não se sinta culpada, talvez não fosse a nossa hora, ou então, talvez essa seja a nossa hora; talvez dessa vez possa dar certo.

Os olhos dos dois concordaram entre si. Tudo parecia estar voltando ao normal desde que Meg perdera seu bebe no acidente em que quase morrera.

— Sim, talvez tudo posso dar certo dessa vez.

***

Cinco minutos mais tarde, após enfrentarem uma longa fila, elas estavam próximas a montanha russa que dava voltas agonizantes sob o olhar de Luce. Aquele jogo de luzes brilhantes e gritos eufóricos não pareciam nada interessantes para ela.

Ela piscou e então, sem saída, sabia que compartilharia aquele momento com Geena.

— Diga “Xiss” — disse Geena puxando a câmera fotográfica do bolso.

Luce apertou os cílios, não muito amistosa. Era como se algo estivesse muito errado, então o flash feriu seus olhos como lâminas de prata e Geena sorriu.

— Não acho que mereça uma foto agora, não estou muito apresentável. — disse ela por fim.

***

Bem ao longe o olhar dele fixou-se nas duas garotas.

Ele estava lá, frio, sombrio...

Naquela noite seu olhar estava mais fechado do que em outras. Era agora rancoroso, dominado pelos instintos, mas Luce e Geena não faziam idéia da sua presença, nem se quer sabiam que ele existia.

***

— Com medo? — perguntou Geena vendo a expressão congelada de Luce.

Luce piscou. — Nem um pouco! Só estou um pouco... receosa, algo me diz...

— Chega disso! Vamos na montanha russa e ponto final.

A duas estavam no pequeno portão de embarque, quando o jovem sorriu para elas. O que ele pensa que está fazendo? Flertando ou trabalhando?, pensou Luce.

— Por aqui. — ele as guiou.

As cadeiras já estavam quase cheias, só haviam dois lugares onde elas sentaram-se bem ao meio. Geena segurava a câmera fotográfica, então guardou-a na bolsa.

— Acho que ele olhou pra você! — disse ela.

— Também acho.

As duas sorriram, então tocaram as mãos uma da outra preparando-se para o ‘show’.

Parecia tudo perfeito, os encaixes, as estatísticas, os lugares... Não seria tão terrível assim, exceto pelo fato de que ele estava lá e que ela era o seu foco...

CONTINUA...

Breno Gomes
Enviado por Breno Gomes em 26/12/2010
Reeditado em 26/12/2010
Código do texto: T2691767
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