Descarte

No rádio tocava a música, o som alto percorria as paredes da sala inteira,a mensagem flutuava através daquela noite quente.No sofá uma sensação inerte adormecia o sonho leviano tão imaturamente brincalhão ferido numa grosseira piada,agora já não interessava o amanhã tão desejado,tão pouco as regalias cobiçadas, nem o que outrora fora um castelo de esperança...O som cadenciado compassava a respiração,o olhar perdido ao alto do teto,e apenas uma idéia.....outrora mágoas já sangraram,já latejaram,seria mais uma dor,mais uma cicatriz,mais uma lágrima escorrendo,outrora a dor fora maior,sem poder disfarçá-la,sem poder sequer escondê-la.A música seguia devagar,a dor sepultava-se,e com ela, todos os sonhos infantis, todo o sentimento puro,lá se ia a inocência,será?A inocência é algo que nasce conosco,nos é dada por Deus,não somos seus senhores,apenas a carregamos....apenas fingimos que a perdemos.....para não nos tornarmos tolos.......reféns do Amor.

Débora estava ouvindo no rádio a música que tão bem dizia o que se passava em sua mente,quantas vezes havia ouvido o mesmo som,sem sequer perceber o significado...há muito tempo atrás amara alguém como nestes filmes açucarados,amara um rapaz comum como todos nestas ruas,com aquele sorriso charmoso,uma pele sensual que toda garota adoraria acarinhar noites sem fim e desfilar com aquele corpo de deus grego na praia só para provocar as outras mulheres.Amaram-se,foram felizes,fizeram tantos planos,como os inúmeros casais das novelas e dos filmes como todos os amantes que ficam a trilar nos bares, cinemas e parques.O amor era tão melodioso que todos acreditavam ser duradouro ,toda vez que passavam pelas pessoas fossem amigos, ou desconhecidos o sorriso duplo de felicidade matizava a rua,tudo era lindo,suave,puro......Leandro era esta melodia de vida de Débora,sua paixão,sua vida,seu sonho sua dança de existência.

Eram 7:30 o café quente na garrafa térmica ,pãezinhos torrados numa bandeja à espera... Da cozinha um aroma de bolo de chocolate,misturado com cheirinho de terra molhada que vinha do jardim saudava a manhã de Domingo.Leandro usando uma velha bermuda vermelha bocejava ,pegando um pãozinho,devorando-o e já colocando outro na boca.Débora do fogão jogou-lhe um beijo, foi logo arrumando o bolo num pratinho ,sentando-se no colo do rapaz.Uma moça loira de longos cabelos lisos ,bonita de olhos castanhos esverdeados,com sua voz sedosa dizia palavras carinhosas ao ouvido do rapaz moreno,sem camisa e com um corpo perfeito.Possuía um sinal no ombro em forma de coração ao qual a moça acariciava com uma mão enquanto cochichava-lhe bobagens com a outra.

-Daqui a pouco iremos ao churrasco da turma benzinho deixe-me terminar o café ,tenho que verificar a moto.Leandro adorava motocicletas desde pequenino.Débora o conhecera num passeio de motoqueiros num passeio a uma velha cidadezinha do interior do Estado. .Não que gostasse de motociclismo, mas aprendera a apreciar os passeios , já que o seu namorado fazia disto sua primeira paixão.

-Ok! Enquanto isto vou ver se falta mais alguma coisa na bolsa,pedi a Ana para levar gelo,copos e pratos plásticos.E lá se foi a cozinha enquanto ele ia em direção a garagem atulhada de caixas de papelão,ferramentas,sacolas e uma Harley Davdyson no meio da garagem como objeto principal do ambiente.Erguendo uma capa plástica surgiu uma prateada moto,reluzente,a paixão de Leandro,todos os dias ele ia na garagem e a cuidava,mimava como se fosse sua criação,o que algumas vezes irritava Débora,que muitas vezes se sentia traída pelo objeto brilhante tão venerado na garagem.

-Então vamos,tudo pronto? Gritou Leandro do corredor pegando uma bolsa pequena de viagem.-Sim! Respondeu a moça prendendo o longo cabelo loiro num rabo de cavalo e carregando uma caixa de isopor velha.Após arrumarem tudo na moto brilhante subiram e foram em direção a uma estradinha de saibro ,moravam afastados da cidade num bairro de pescadores,os pais de Débora deixaram a ela a casa em que viviam.Leandro não era dali, vinha de uma cidade grande,fora criado na urbanização.Os dois adoravam viagens,pescas ,acampamentos, tudo o que estimulasse o espírito a aventura .Apenas uma coisa irritava Leandro,a mania de Débora se dedicar aos compromissos religiosos da cidadela,ficava semanas a fio envolvida com os eventos e deixava-o a esmo,o que o preocupava,pois era muito ciumento,inseguro,pensava que ela fora o melhor que ocorrera em sua vida,pois vivera muitos relacionamentos,mas nenhum havia trazido a ele a segurança e o carinho que Débora lhe dava.Quanto a ela, ele era o seu viver,não conseguia imaginar-se sem a presença do seu amor ,era algo sofrido de se pensar.

Os amigos chegavam a fazer troça de tanto doce,dos muitos carinhos,alguns por vezes com ciúme do casal,outros por serem céticos,talvez por nunca terem a oportunidade de sentirem esta sensação cúmplice dos amantes.

A Harley rodava,deslizando pela estradinha de saibro rosado.Árvores,postes,arbustos ,cercas eram deixados para traz,o vento batia no rosto de Débora e o aroma de terra úmida chegava-lhe ao nariz,sentia-se livre,feliz e disposta a efetuar seus planos ,logo que chegasse em casa após o churrasco com a turma iria contar a novidade a Leandro.As curvas iam sendo traçadas,inclinando-se ia a moto dançando na estrada ao sabor da velocidade,cutucando o vento que soprava as folhas das pequenas árvores floridas na beira da estrada.Os pássaros acompanhavam os dois ,sobrevoando o caminho,o céu ia se abrindo num azul claro, o cinza da manhã ia diminuindo, surgindo um Sol amarelo delicado .

Quando chegaram ao churrasco a maioria dos amigos já estavam se preparando,em meio a algazarra dos rapazes as moças se acomodaram na churrasqueira e foram ajeitando bolsas,caixas e garrafas.Alguém iniciou a tocar um violão,outro pegou um pandeiro e logo um sambinha saiu como aperitivo do churrasco ,entre uma caipirinha e outra cantavam,sorriam,outros desajeitadamente tentavam acompanhar os músicos batendo nos bancos de madeira.A manhã ia-se terminando regada a alegria,música e casais enamorados.A tardinha alguns já iam se preparando para se despedir,Débora ia colocando tudo dentro das sacolas,quando Ana chegou perguntando baixinho:_Você já contou a ele?-Psiu! Não! Virou-se a moça,ainda não...quando chegar em casa contarei a ele....Leandro chegou,abraçando-a e dando-lhe um longo beijo na boca,Ana afastou-se ,seguiram até a moto e despediram-se de alguns retardatários , foram em direção do portão da propriedade.A moto reiniciou o percurso para casa,agora brandamente,a tarde ia se pondo ,as nuvens aos poucos escondiam o avermelhado do céu ,o perfume do campo exalava a delícia do final da tarde,a viagem de volta ia sendo pincelada pela natureza,a poesia da vida melodiava o retorno dos amantes,todos estavam bem ,todos estavam em paz. Todos se amavam.

Já anoitecera quando Leandro desligou a moto e fora à garagem,enquanto Débora terminava de organizar os mantimentos na cozinha.-Vou tomar um banho amor, te espero na cama...disse ele piscando e dando-lhe um beliscão no traseiro A moça ficou um pouco mais,olhava-se no reflexo do vidro da janela da cozinha,pensava em tudo o que lhe acontecera desde que conhecera Leandro, estavam juntos cerca de três anos,embora no início tenha sido díficil, os dois eram muito teimosos e decididos,mesmo assim estavam juntos, amavam-se ,completavam-se .Enquanto apagava a luz da cozinha ia para o banheiro,precisava duma ducha,enquanto a água deslizava pelo seu corpo,ia lembrando da pele de Leandro,suas mãos morenas a deslizar por seu corpo ,seus dedos macios quando lhe percorriam a pele,do gosto de sua boca quando tocava a sua ,dos lábios a lhe provocarem arrepios.Cada lembrança causava-lhe espasmos.Agora iria lhe contar o que tanto escondera,primeiro por insegurança,outra por tornar esta hora especial para ambos.Saindo do banheiro enrolada numa felpuda toalha branca,desliza até a cama onde ele está entretido com uma revista de música poprock,arranca-lhe a leitura joga-lhe a toalha,descobrindo suas curvas,ao que ele a arrebate rolando os dois na cama,entre carícias lascivas o amor flui pela noite a dentro ao som de um poprock no rádio....

-Vou pegar um cigarro ,você quer? Indagou Leandro. Não,se bem..talvez.Dizia ela nervosa,talvez um cigarro ajudasse.Ele voltou passando as mãos pelos seu corpo,amor preciso lhe contar algo,escute,alguns dias tento te dizer mas achei que hoje seria melhor...ia ela aos poucos pronunciando,ora olhava o espelho como para se certificar que estava com a expressão correta,ora baixava a cabeça ,o que ele diria...o rapaz a observava com aquele olhar castanho,moreno,belo,intenso....Leandro lembra daquele dia que fui a cidade com minha amiga Ana,eu me senti mal....ele acendeu outro cigarro e sentou-se na cama,..sim o que houve? Algo saiu errado? Não! Amor,tudo foi bem,o médico pediu alguns exames e ...bem....nós,eu....você vai ser ..oh! Leandro seremos pais,vou ter um bebê!!!Dizia ela entre sorrisos e lágrimas.Abraçando-o iniciou a beijá-lo,quando num repente foi empurrada para fora da cama,teve que se equilibrar para não ferir a cabeça na quina da cômoda ,assustada olhou o rapaz,este apresentava o rosto trasnfigurado, seus olhos endureceram ,as mãos crisparam-se.-O que está acontecendo amor? Balbuciava a moça surpresa.Ele caminhou até a sala,no escuro foi até a cozinha passando pelo balcão onde estavam as facas ,ela o seguiu chorando,não entendia aquela reação,ele sempre falara em crianças,nunca o ouvira planejando terem filhos porém sabia que gostava dos pequenos.Enquanto as lágrimas escorriam pela face ,Leandro se dirigia até a garagem,abriu o portão,subiu na moto,ligando-a através do som da brilhante foi-se,deixando Débora perplexa....nunca pensara que um filho seria demais para ele,como pudera se enganar,como deixara-se fazer-se de tonta,esquecera de como os homens são egoistas,imaturos, centrados no seu mundo de poder,luta,controle,claro que para Leandro dividí-la com outro ser seria o impossível,o que nunca fora para ela em relação a moto,pois era apenas um objeto,um utensílio que a qualquer momento seria descartado assim como ela e seu bebê o foram.....

Em homenagem a minha ex cunhada assassinada pelo amor da vida dela,em 27 de agosto de 2001.

Como eu disse as dores foram muitas, a cicatriz ainda sangra.......

Violetta