Um Abismo Engoliu o Mundo (História Fantástica)

Quando eu avisei quarenta anos atrás que o buraco próximo da antiga caixa d'água da prefeitura estava crescendo, ninguém acreditou em mim. Muitos dos meus conterrâneos não souberam ou não quiseram dar a devida atenção às prudentes palavras de um adolescente que na realidade jamais houvera mentido em sua vida. Os mais velhos faziam gracejos e ironizavam como se estivessem ouvindo uma anedota contada por um jovem de espírito criativo, uma mente infantil ágil em arquitetar aventuras e fantasias. Para não me alongar demasiadamente, creio não ser necessário mais do que comentar que de um momento para o outro os nossos vizinhos simplesmente deixaram de freqüentar a casa de meus pais e que, por fim, até mesmo alguns dos meus melhores amigos e colegas de escola passaram a me tratar de maneira um tanto rude quando acaso me encontravam pelas ruas da cidade. Havia algo de estranho em todas aquelas reações exageradas. Éramos apenas meninos e meninas e brincávamos de esconde-esconde, rouba-bandeira e outros jogos infantis naquele lugar mágico, uma área quase plana localizada entre os fundos da escola e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, recheada de plantações de milho e sobrevoada por bandos de maritacas e papagaios coloridos em busca de frutas, grãos e insetos. No ponto mais distante daquela paisagem via-se um lago e um pequeno bosque que se estendia por dois ou três quilômetros e aonde às vezes alguns sitiantes vinham montar barracas e fazer piqueniques nos dias mais quentes do verão. Aquele era o lugar preferido das nossas brincadeiras. Ali corríamos, pulávamos e gritávamos como pássaros livres na tarde, depois de cada tediosa manhã de aulas de gramática com a professora Irani. Hoje, transcorridos tantos anos, eu me vejo diante de questões para as quais ainda não consegui encontrar respostas definitivas. Em que lugar do universo andará a adorável mestra de quem guardo tantas lembranças ? Será que um dia alguém vai se debruçar sobre nós com o mesmo carinho e cuidado com que muitas vezes nos surpreendemos recordando determinadas pessoas que exerceram significativas influências sobre as nossas próprias vidas ? De fato, já se passaram muitos anos desde os dias da minha infância. Deles restou-me um punhado de boas recordações que carrego amorosamente no peito. Naquela época, entretanto, após a estranha notícia ter-se espalhado, os quase dois mil habitantes da região continuaram a levar suas vidas calmas e pacíficas, no ritmo próprio de qualquer pequeno povoado do interior. Poucos perceberam a gravidade do fato e o esquisito da situação. Certamente entre estes poucos estavam aqueles que se puseram perplexos diante da estonteante idéia de que poderia existir ali, nas profundezas da terra e a poucos metros de suas casas e de nossas vidas sossegadas, um buraco imenso que não parava de crescer e que - mais dia, menos dia! - acabaria por engolir a todos nós. E necessário, porém, viajarmos no tempo para que eu lhes exponha os fatos na ordem exata em que se sucederam, uns após os outros, pingando na lenta passagem das horas no relógio da infância e embalados pelo indolente repicar dos sinos de uma cidadezinha do interior.

II

Todas as cidades de pequeno porte se assemelham entre si. A maior parte delas desenvolveu-se em torno de uma região central constituída por uma rua ou avenida larga, normalmente de terra batida. Na época da fundação destas cidadezinhas, encontraríamos nesta área central as suas mais importantes instituições comerciais, públicas e privadas, se é que podemos nos utilizar do adjetivo "importantes" ao nos referimos ao pacato comércio existente nestas incipientes sedes de município. Com o passar dos anos e o natural desenvolvimento destas quase-aldeiazinhas, perceberemos naquelas ruas centrais uma variada gama de pequeninas lojas de comércio que buscam atender com presteza e pontualidade às necessidades e exigências básicas da sua clientela cotidiana: uma agência bancária, uma panificadora, a delegacia de polícia, a Prefeitura Municipal e um ou dois pequenos hotéis que recebem de braços abertos os poucos forasteiros que se virem obrigados a ali pernoitar por um ou outro motivo. Naturalmente tomando uma das direções daquela avenida central, seguiremos inevitavelmente rumo ao terminal rodoviário, onde poderemos presenciar o desembarque diário de alguns vendedores ambulantes vindos de centros comerciais mais abastados ou ainda dos próprios habitantes do lugar retornando da capital ou de breves viagens às localidades vizinhas. E se calhar de seguirmos para o lado oposto, desembocaremos provavelmente numa praça de igreja quase sempre muito bem cuidada pelas prefeituras locais, recheada com faceiras arvorezinhas protegidas por finas armações de arame ou madeira, flores das mais variadas tonalidades e uma abundância de bancos de jardim engenhosamente construídos com uma mistura de cimento e ferragem. Nas ruas paralelas e transversais, avistaremos toda a sorte de casas grandes e pequenas, alguns mercadinhos e açougues que oferecem um pouco de tudo o que se possa imaginar neste e em outros mundos e uma infinidade de bares onde poderemos nos ocultar do calor de uma ensolarada tarde de verão e relaxar trocando palavras amenas com a gente do lugar. Muitas vezes, quando desembarcamos na estação rodoviária de uma destas cidades para ali permanecemos por dois ou três dias – como é costume acontecer com os vendedores de tecidos que percorrem o interior do Estado em busca de clientela e lucro - perceberemos que no geral elas apresentam peculiaridades muito interessantes. Por um lado é possível caracterizá-las pela rapidez com que se fazem conhecidos os acontecimentos da sua própria vida cotidiana. Por outro, podemos igualmente distinguir a dificuldade e a lentidão com que se defrontam as novidades recém chegadas da Capital para se fazerem rotineiras e de uso comum no dia-a-dia da população. Um último e talvez o mais importante aspecto a assinalar é o da tranqüilidade da existência dos habitantes destas pequenas sedes, sempre marcados pelo pouco fazer e o muito falar de sua gente. Neste e em muitos outros aspectos, a nossa cidadezinha não chegava a destoar de qualquer outra que se lhe assemelhasse, fosse no porte ou em seus predicados. Nela, a partir de uma determinada hora da noite, todo e qualquer som diferente ou exótico poderia ser percebido pelos ouvidos de um surdo que se encontrasse a dez léguas de distância, tão acostumados estávamos com os repetitivos sons da nossa fantástica fauna noturna. Refiro-me ao coaxar das rãs e ao cricrilar dos grilos em certas noites inesquecivelmente frias e longas, ao latir preventivo dos vira-latas no terreiro das casas, ao ressonar incômodo de pessoas semi-adormecidas sobre velhos colchões de palha e à bela e instigante música das estrelas. Apesar dos males da vida moderna já estarem alcançando até mesmo as localidades mais longínquas da nossa terra, ainda hoje é possível captarmos as harmonias e tonalidades celestiais. No entanto, numa noite fria e chuvosa de um dezembro antigo, algum tempo antes que viéssemos a tomar conhecimento dos fatos que narrarei em momento oportuno, uma parcela dos habitantes desta cidadezinha perdida no interior de Minas foi acordada por uma estridente gritaria seguida de desconexas badaladas do sino da nossa Igreja do Rosário. Vagarosamente, alguns moradores do lugar se encaminharam em direção à Praça da Matriz, munidos de suas sombrinhas e guarda-chuvas, encapotados até o pescoço e calçando protetoras galochas de borracha. Ainda que a maior parte daquela gente se sentisse um tanto temerosa diante de tão estranhos acontecimentos, havia igualmente um não-sei-quê de curiosidade e todos se puseram singularmente diante da igreja a aguardar o quê mais de extravagante poderia ocorrer naquela noite chuvosa. Após alguns minutos daquela espera angustiante, o povo da nossa comunidade viu os portais da igreja serem escancarados e surgir a figura do velho Padre Geraldo. Com expressão de desespero e dor, este comunicou aos seus paroquianos que a imagem de Nossa Senhora havia desaparecido, que alguém penetrara na capela da matriz durante as primeiras horas da noite e a levara como um troféu. Para a nossa curiosíssima platéia, aquela não era uma escultura qualquer, substituível. Era a imagem da santa protetora da cidade. Se tínhamos a noção da sua importância histórica e sentimental, jamais havíamos imaginado que ela igualmente possuísse um valor econômico no mercado das artes ou que pudesse ser comprada e vendida por algum colecionador como uma simples peça de museu. Segundo certas lendas e histórias que corriam de boca-em-boca e que eram notoriamente estimuladas pelo nosso pároco local, a estatueta de madeira fora encontrada por antigos pescadores no lago azul que guarnecia de água potável toda a região, no inicio da colonização e da fundação do antigo arraial do Rosário, muitas décadas antes que o nosso vilarejo viesse a se tornar sede de município. A imagem representava a Virgem Maria amparando acolhedoramente nos braços a um guloso menino Jesus e apoiando os seios com as próprias mãos de modo a facilitar a amamentação do seu divino filho. Pelo que se pôde apurar posteriormente através da comparação dos relatos de algumas das personagens presentes naquela ocasião, o padre teria lançado uma maldição a todos os viventes da região. Até que a sagrada imagem retornasse para a capela da igreja, nada naquele lugar produziria vida. Árvores e plantas feneceriam e os herbívoros não mais teriam de que se alimentar. As cristalinas águas do lago azul secariam e as aves deixariam de sobrevoar o nosso céu límpido e claro. Por fim, as trevas cobririam o abismo e as sementes da vida murchariam como se tivessem sido depositadas num canteiro de pedras e espinhos. Após dizer estas palavras, o homem teria dado alguns passos numa direção qualquer. Péres, o farmacêutico, afirmou ter percebido nas faces do velho padre uma estranha expressão de insanidade. Segundo o seu entendimento, o padre parecia estar vendo ou ouvindo coisas que nenhum outro ouvido humano conseguira captar naquele momento, ao mesmo tempo em que seus lábios murmuravam uma estranha mixórdia de palavras incompreensíveis. Como eu disse anteriormente, o padre ensaiara alguns passos numa direção qualquer. Entretanto, no meio da sua caminhada fora atingido misteriosamente por um raio vindo sabe-lá-Deus-de-onde e caiu desfalecido no chão, olhos abertos e esbugalhados, metade do corpo enegrecido, uma baba avermelhada escorrendo dos lábios. Houve gritaria e debandada geral. As famílias despacharam-se do local e se fecharam piedosamente em suas casas durante aquela e nas duas noites de chuva que vieram a seguir. Esperavam que o nascimento de um dia de sol lhes reabrisse as portas do paraíso, trouxesse paz e luz para o interior dos lares e fizesse secar o medo que passara a habitar os corações. Ninguém havia tido o mais leve pressentimento de que coisas ainda piores estavam por vir, de que aquilo fora apenas o princípio da dor e de que todas as suas lágrimas reunidas apenas começavam a se fazer rios e lagos, cachoeiras, mares e oceanos...

III

Se é correto dizer que o Verbo já se achava presente no princípio de todas as coisas, talvez não seja ímpio afirmar que Ele se fez carne na medida em que os boatos sobre a existência do buraco começaram a circular pela cidade. Num primeiro momento, os políticos locais - bem como a maior parte dos nossos cidadãos mais influentes - reuniram-se secretamente no andar superior do prédio da Prefeitura e decidiram ser mais conveniente para “todos” que se mantivesse a população ignorante dos fatos que estavam se desenrolando nos arredores da cidade. Contudo, como já apontamos anteriormente, em pequenas localidades do interior poucos acontecimentos conseguem permanecer por muito tempo ocultos do conhecimento público. Todos sabem quase que naturalmente as histórias da vida e das casas alheias. Quaisquer eventos, mesmo aqueles que acaso venhamos a considerar sem uma maior significação ou mais ou menos desprovidos de importância, caem rapidamente nos ouvidos e na opinião das pessoas, cada qual mais interessado em expor a sua própria versão ou juízo seja lá sobre o que for. Lembro-me que da chegada do homem à Lua muito se falou e comentou em nossa cidade. Os vizinhos reuniam-se preguiçosamente acocorados na praça da igreja ou acomodados em velhos bancos de madeira dispostos diante das portas das casas e punham-se a discutir sobre a veracidade daquele acontecimento prodigioso. Alguns se negavam a acreditar no que viam e ouviam. Outros apenas se fechavam num mutismo tolo, entremeado de orgulho e medo, uma redoma de vidro que a nada e nem a ninguém protegeria. Mas esta já é uma outra história. O fato real naquele momento fora que inicialmente os dirigentes locais, o prefeito, os vereadores e os nossos bem-sucedidos comerciantes e fazendeiros não quiseram ou não tiveram capacidade suficiente para perceber o real significado do que estava ocorrendo na região. É possível que agissem assim por inconsciência diante da gravidade dos fatos, por um excesso de confiança ou, finalmente, levados pela necessidade interior de evitar ou pelo menos diminuir a velocidade da vida. Pouco depois, entretanto, após comprovado por toda a gente o rápido crescimento daquela fenda que se abria na terra queimada pelo sol e que começava a devorar as plantações de milho e os campos de pasto vizinhos, aquelas mesmas pessoas passariam a agir de uma maneira assaz diferente. Muitas delas buscariam angariar para si toda e qualquer possível vantagem que viesse a resultar daquela infeliz situação, posto começassem igualmente a sentir um certo temor de que o abismo pudesse chegar de fato a atingir algumas de suas propriedades e a ameaçar o seu poderio político e econômico. Tal fato fora o bastante para que na primeira reunião da Câmara dos Vereadores ficasse decidido unanimemente que a Prefeitura deveria contratar tantos caminhões quantos se fizessem necessários para efetuar o transporte de terra e entulhos que seriam despejados na boca da cratera, de modo que aquela maldição viesse a ser aterrada num curto espaço de tempo. O que os meus humildes conterrâneos não conseguiram perceber fora que através desta estratégia os políticos visavam antes a desviar uma vez mais as verbas do município do que realmente a solucionar os graves problemas com que a cidade começava a se defrontar. Pagava-se um preço determinado pelo caminhão de terra e apresentavam-se recibos e cálculos de despesas com custos absurdamente mais elevados. A diferença entre os valores efetivamente pagos e aqueles constantes das notas de empenho oficial perdiam-se nas extensas nuvens de poeira que se levantavam nas estradas entre as viagens de ida e volta dos veículos. E o curioso é que tais valores acabavam misteriosamente reaparecendo mais tarde nas mãos de alguns poucos indivíduos que chegariam a fazer fortunas durante os dois primeiros anos do crescimento daquela furna. Mas - à parte este interesse grosseiro e obscuro manifestado por alguns dos nossos bons cidadãos - certamente o que as crianças mais gostavam de ver naquele tempo era a enorme fila de caminhões crescendo nas estradas, se espraiando a perder de vista como cobras barulhentas nas costelas das serras vizinhas, para qualquer direção que os olhos se estendessem na linha do horizonte. Começavam a chegar caminhões com placas de outros estados, da Bahia, do Paraná e de São Paulo. Muitos dos nossos pares se dispunham a colaborar na grande obra de saneamento. Via-se, à longa distancia, a fumaça das descargas. E o ronco dos motores era ouvido de qualquer ponto da cidade, a muitos quilômetros da boca do inferno. Foi com este sonoro apelido que a criançada batizou e passou a designar a enorme rachadura exposta a céu aberto. Os veículos transitavam durante todo o dia em ininterruptas viagens. Iam lentamente da serra à beira do precipício, descarregavam montes e montes de areia, terra e pedras amputadas em violentas explosões nas encostas das serras, restos de tijolos, argamassa e toda a sorte de imundícies e entulhos recolhidos aleatoriamente nas redondezas. Supunha-se nesta época que o abismo já abrangesse cerca de um quilometro de comprimento de uma margem à outra. Quanto a sua profundidade, poucos se aventuravam a arriscar qualquer estimativa. Parecia mesmo que ele se alongava infinitamente até às portas do inferno, tornando-se deveras difícil calcular com certeza toda a dimensão daquela estupidez. Por volta desta época foram criados muitos novos empregos na cidade e ela prosperou durante algum tempo, aliviada diante daquele beneficio inesperado. Era tão bom ver as pessoas trabalhando em grupos extremamente coordenados, entusiasmadas, determinadas e cheias de zelo, despertando cedo - bem mais cedo do que as aves da região, que agora começavam a rarear nos céus do vilarejo - e dispostas a empreenderem heróicos esforços naquela empreitada. Não mais havia na região sinais ou temores de revolta. A grande maioria dos cidadãos tinha com que se ocupar e como prover satisfatoriamente a si mesmos e as suas famílias, ainda que aquela estivesse se tornando uma realização por demais prolongada e cansativa. Em seguida, a Prefeitura contratou uma enorme quantidade de motoristas e auxiliares que se puseram a movimentar toda aquela engrenagem. Alguns se especializavam no manejo de pesados tratores, escavadeiras e gigantescos guindastes que levantavam borbotões de terra em suas pás mecânicas, despejando-as em seguida nas caçambas dos veículos. A maior parte daquela gente era inculta e possuía raríssimos bens. Utilizavam-se basicamente das suas próprias mãos como ferramentas de trabalho, portando pequenas pás e enxadas de metal e incumbindo-se de tarefas menos complexas como o carregamento dos caminhões. Assemelhavam-se a abelhas operárias laborando numa colméia monstruosa. Outros, finalmente, posicionavam-se nas estradas numa tentativa incipiente de solucionar os graves problemas de congestionamento que começavam a afligir e a chamar a atenção da população e das autoridades. Numa convocação especial, a Câmara Municipal determinou a divisão do dia em horas pares e ímpares. Nas horas pares todos os veículos se movimentariam em direção ao abismo para procederem ao descarregamento de quanto haviam transportado e nas horas ímpares as estradas deveriam estar totalmente livres e desimpedidas para que os caminhões pudessem retornar às serras vizinhas e serem novamente abarrotados de terra. Não obstante - e apesar de toda a aparente solidariedade que se formara em torno daquela causa comum -, continuávamos ainda a ouvir certas histórias ou lendas sobre alguns indivíduos solitários que vagavam pelas estradas à espreita dos poucos e incautos caminhoneiros que ainda se aventuravam a continuar fazendo viagens extras nas horas noturnas ou de algum pedestre menos prevenido que por acaso ali transitasse. O lugar tornara-se semelhante às minas de ouro e pedras preciosas das serras de antigamente, repleto de um formigueiro humano desumanamente trabalhando e vivendo debaixo do sol. Os pescadores e os pequenos agricultores da região foram convocados numa terceira e última assembléia dos vereadores e receberam a sugestiva advertência de que deveriam transferir as suas forças de trabalho para aquele serviço fatigante. Contudo, o que mais chamava a atenção das pessoas é que naquela lida eram descarregadas no buraco uma média diária de quinhentas caçambas de terra, mas que, na manhã seguinte, após a noite mal dormida dos caminhoneiros e antes que se iniciasse novo dia de trabalho, muitos deles se aproximavam da borda do abismo e estacavam pensativos e silenciosos diante da absurda sensação de que a fossa parecia ainda maior do que no dia anterior. Técnicos, geólogos, biólogos e engenheiros da Prefeitura e da Capital foram convocados a visitar o lugar e a tecer elucubrações e esclarecimentos sobre aqueles fatos instigantes e em relação à obra que estava sendo executada pelas autoridades locais. Sem muita segurança, apegavam-se a termos técnicos como sistema de erosão, voçoroca, desagregação de rochas, deslocamento de camadas, sedimentação, desertificação e outras palavras um tanto vagas e de difícil compreensão para um povo que apenas aprendera a viver e a sobreviver dos frutos da terra. Devo finalmente comentar que houve um único e breve período de alívio durante todos aqueles anos de luta e consumação. Foi na época em que o abismo tornou-se sítio de aventureiros, alpinistas e exploradores de grutas e cavernas. Neste período, os comerciantes locais, os pequenos fazendeiros e mesmo alguns dos mais humildes habitantes da cidade puderam recuperar parte do que haviam perdido com a desvalorização territorial da região, alugando suas casas e estabelecimentos comerciais para que os visitantes pudessem pernoitar e se alimentar com um bom prato de feijão tropeiro com lingüiça, saborosa especialidade da região. Os exploradores vinham de todas as partes para conhecer a imensa lapa, a gigantesca cratera de onde não saia lava, posto não ser um vulcão. Esta fora a única conclusão real a que haviam chegado os mais renomados cientistas e especialistas que visitaram o buraco.

IV

E ele foi crescendo, aumentando assustadoramente. Cresceu tanto e de tal maneira se agigantou que num certo dia os habitantes do lugar foram obrigados a abandonar suas casas e partir. Seguiam em grupos vagarosos pelas estradas, um ar de desânimo estampado nas faces e nas mãos. Na medida em que se multiplicava o número daqueles retirantes em fuga, passaram a formar longas filas de carroças e carros que se perdiam nas curvas dos caminhos, levando o pouco que haviam conseguido amealhar nos últimos tempos com o aluguel das casas e as refeições servidas aos estrangeiros. Alguns transportavam em lombos de burros os raros pertences que julgavam imprescindível carregar consigo. Outros - como Lot diante da chuva de fogo e enxofre que se fez derramar sobre as cidades malditas - abandonavam tudo para trás, bens e lembranças que infatigavelmente haviam reunido no decorrer de toda uma vida. Somente um velho pescador, de nome Ibiapaba, decidiu permanecer na cidade que fora o seu berço natal e onde transmitira aos descendentes o divino sopro da vida. Num dia-como-outro-qualquer foi engolido pelo imenso buraco, enterrado juntamente com as casas, o cemitério e a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Segundo consta, o lago azul refletiu placidamente o desaparecimento do último casebre e da torre da igreja e por fim foi igualmente sugado para as profundezas da terra. Não se pode afirmar com certeza que haja alguma relação entre a maldição lançada pelo padre naquela fria noite de dezembro e tudo o que aconteceu depois na vida dos meus conterrâneos e na cidade que me viu crescer. No entanto, devo deixar registrada a coincidente sucessão dos fatos e alertá-los de que tanto o que se passa no coração dos homens quanto o que ocorre no interior da terra é lugar de puro mistério, areia movediça que deve ser apalpada com cautela e precaução. Depois que meus pais mudaram-se para a capital, nunca mais tornei a pisar naquela região. Procurei me esquecer de todos aqueles que partiram ou se perderam nos caminhos da vida, antigos companheiros de escola, a velha e douta professora de quem guardo tantas recordações, tios e primas que me eram queridos. Pelas notícias que às vezes recebo de algum conhecido ou através dos noticiários locais, ouço dizer que o buraco continua a crescer, crescer, crescer interminavelmente. Após devorar a minha cidade natal e duas outras que se localizavam há algumas léguas de distância, já se prepara para engolir uma cidade de porte médio. E sabe Deus aonde vai parar ! Sabe lá Deus onde começa ou termina qualquer abismo ...!