CONTO DO ESPELHO

A pequena Elizabeth estava ansiosa com a viagem, mas foi pega de surpresa por algo que ela não contava. O inverno chegara mais cedo, e não tinha graça nenhuma, quando tudo estava pronto. A menina não se conformava, mas os pais tentavam convencê-la de que em breve o sol apareceria, e não haveria ninguém para impedir isso.

Elizabeth estava doente e logo não estaria neste mundo. Os pais acharam melhor não levá-la a viagem prometida, tinha muitas coisas a resolver. Mas ela queria era ver o mar, porque por mais que tudo isso fosse chato, ela sabia como manter em seu rosto a descoberta de um novo mundo; sabia o que estava acontecendo e não havia ninguém que mostrasse pesar sem que ela sorrisse com a certeza que só ela tinha.

Elizabeth estava agora no quarto, havia perdido o sono, pois não entendia o que acontecia com a mãe mesmo sabendo o que se passava com ela mesma. Levantou-se, acendeu a luz e pegou um livrinho que estava sobre a estante de bonecas.

No quarto acima, a mãe olhava fixamente ao teto. Os momentos vividos passavam rápido na cabeça, mas eram eles o maior sinônimo de vida; “diante da morte me vejo aqui, deitada neste quarto claro com o olhar em sombras, enquanto escuto barulhos pela casa que não são meus”. Logo ao lado do criado mudo, havia um estojo de maquiagem, tinha um pequeno espelho na tampa, dava apenas para ver os olhos, ou, somente a boca, não tinha como contestar, quem sabe desta forma o reflexo não assuste; visto pela metade não há vontade que prevaleça, não há ninguém do outro lado, só pedaços de órgãos cansados.

Na sala o pai imaginava como seria dali para frente, perderia aquilo que mais lhe importava, perderia o amor, sua criação. Agora com o olhar dormente, ele sentia que o propósito da vida era resumido ao ontem, onde palavras duras não eram ditas e onde os sorrisos prevaleciam sobre pensamentos ruins. Mas agora a morte espreitava em quase todos os cômodos da casa e os espelhos refletiam dor. “Como será que esta minha filhinha?” Pensou! Mas não sabia ele que Elisabeth já morava no espelho e era conhecedora do reflexo, pois a visão dela não exigia, mas se encantava com sua face branca que, apesar de cada vez mais pálida, contrastava perfeitamente com seu cabelo negro.

A família estava se desintegrando. A doença de Elizabeth lhe marcara os dias neste lado, mas ela não ligava com isso, queria somente ver o mar e sentir aquele infinito tocar seu rosto. Não importava se lhe olhassem com pena, para ela, essas figuras não conheciam muito bem o que se passava ali, naquele lugar que só ela via. Como ela queria viver todo este tempo com o amor e o abraço dos pais, porém eles haviam se perdido num lugar em que geralmente as pessoas se encontram. A mãe não conseguia pensar ou fazer preces, uma única coisa estava fixada em sua cabeça; o fim, o quanto sofreria, o quanto deixaria de ser mulher. Os espectros sombrios já ultrapassavam do lado de lá para o lado de cá, como o espelho era pequeno, atacava-lhe somente os olhos e a sanidade. Tomou uns calmantes, deitou-se, parecia não fazer efeito, nada fazia efeito com todas estas sombras caminhado no quarto. “O que foi que eu fiz?” Perguntava-se. “O que foi que eu fiz?” Gritava. Nesta hora tão tarde ninguém ouvia, mas a certeza lhe tomava por completo, a morte era piedosa e não deixava ninguém se enganar.

A mulher chorava. Estava agarrada as lembranças, mas não estava agarrada a filha. Será que eles sabiam que a morte não havia entrado naquele quarto? Que este momento foi reservado para os reflexos da perda, do ontem, do quando se tem? A mãe não dormia, mas agarrava-se aos espectros que se transformavam em fotos, em recordações e roupinhas de bebê.

Elizabeth já havia descoberto o outro mundo, crianças têm uma facilidade imensa de aceitar as coisas da morte. Deve ser por isso, que as sombras entravam em todos os cômodos menos no quarto dela. Ali, a morte só entraria na hora certa e não adiantava assustá-la com as perdas da vida. Ela dormia tranqüilamente em sua caminha rosa, o livro estava ao seu lado. Ela ainda pensava na viagem ao mar, por que ela não queria ir antes, mas levou muito tempo para que a morte conseguisse invadir seu quarto. Elizabeth nem ao menos se assustou com os espectros sombrios, que para ela, não passavam de sombras engraçadas que se perdiam em meio ao seu sorriso diante do espelho.

Silvestre C. Cantalice Filho

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