E o Vento Matou

MATE

Disse a voz em meus ouvidos. Virei assustado e a rua estava vazia. Eram duas da manhã e as ruas estavam completamente vazias.

MATE

O céu estava carregado com nuvens avermelhadas, hostis, opressoras, carregadas, onde raios faiscavam anunciando o fim dos tempos.

MATE

Eu já não me lembrava da última vez que fora açoitado por um vento tão forte. O silvo que ele fazia ao passar pelas soleiras das portas dos prédios antigos era assustador.

MATE

Uma pequena brecha foi aberta pelas nuvens e a lua cheia foi revelada, com um brilho opaco, quase triste... Uma nuvem negra, negra, negra cobria metade de seu círculo.

MATE MATE

A voz gritava na minha mente, me revirava o estômago, enregelava minha espinha. Não consegui me controlar ao ver um pombo com a asa machucada vagando, desesperançoso, infeliz, meu único companheiro naquela noite macabra. Corri até ele e agarrei-o. Cheirava esgoto e estava com as penas úmidas. Conseguiu dar duas bicadas no meu dedo indicador antes que eu lhe quebrasse o pescoço.

MATE MATE MATE MATE

Eu já ouvia não meus passos. Aquela voz entupia meus tímpanos com seu ressoar maligno e desconexo e eu nada pude fazer quando me deparei com aqueles dois gatos; nada pude fazer além de encurralá-los num paredão na base do chute e, depois, uni-los pela cauda com uma corda e jogá-los no fio.

MATE

Consegui chegar no estacionamento sem mais nenhum incidente. Entrei no carro, coloquei a chave no contato e esperei. Meu coração batia descompassadamente. Estaria eu, ficando louco? De repente a magnitude do que eu havia feito me assaltou. Senti-me péssimo. A crueldade com que cometi aqueles assassínios não era da minha índole. Eu não conseguia nem esmagar uma barata, com pena do pobre bicho. Girei a chave e peguei a avenida que me levaria até em casa. Liguei o som. Elvis. Segui dirigindo tentando me convencer que o que havia acontecido fora apenas um pesadelo. Eu saí do trabalho cansado, entrei no carro e cochilei e quebrei o pescoço de um pombo e joguei dois gatos para ficarem pendurados e apodrecerem nos cabos da rede elétrica apenas no teatro de um pesadelo. Relaxei no banco e abaixei o vidro e com a primeira lufada de vento que adentrou o carro a voz voltou:

MATE

- NÃO! - Berrei.

MATE

- Porra, não, não, não! - Fechei o vidro. Não adiantou.

MATE

Aumentei o som no volume máximo. A impressão era de que os vidros iam estourar com a batida.

MATE

Não adiantou. Fiquei resignado.

MATE

Ao longe, a luz verde do próximo farol se destacava. Pisei no acelerador. Daria tempo. No meio do percurso, surgiu a luz amarela. Luz vermelha e um casal atravessando a avenida. Alcancei o pedal do freio.

MATE

Afundei o pedal. Do acelerador. Os corpos rolaram por cima do pára-brisa. O rosto da mulher. O olhar dela pra mim. Olhei pelo retrovisor o que sobrou do casal. Eram jovens. Todo um futuro pela frente. Tudo não durou mais do que dez segundos. Dez segundos e toda uma existência vivida em vão, para acabar com a imprudência de um motorista que ouve vozes. Comecei a chorar. Desejei morrer e fiz de tudo pra isso acontecer. Nunca imaginei que seria tão difícil capotar um carro. Não consegui faze-lo. Virei à esquerda, depois à direita e percebi que a rua do meu prédio estava sem luz. Ótimo. Não conseguiria tomar um banho quente nem entrar na Internet. E subiria doze andares de escada. Estacionei no portão do prédio e esperei algo acontecer. Ouvia jazz. Ou blues. Era um ignorante, apertei uns botões do rádio e no que pareceu-me agradável, deixei rolar. Dois minutos depois estava impaciente. Um caminhão da companhia de energia elétrica estaciona perto de um determinado poste. Um funcionário iça uma escada .Usa capacete, uma roupa cinza com aquelas faixas reflexivas (olhos de gato). E não usa o cinto que o prende ao poste. Just Like a Woman, no rádio.

MATE

Dei partida e deixei os faróis desligados.

MATE

Deixei o carro na direção da escada.

MATE

Acelerei. Foi como um tapa numa cortina, o choque do carro com a escada. Bati na traseira do caminhão. Os airbags dispararam. Saí do carro e voltei pra ver o estrago. Tinha dado uma amassada boa. Seria um prejuízo e tanto. Fui ver o homem da energia. A cabeça tinha certa semelhança com o capô do meu carro amassado. Tinha aquela aparência de lata de cerveja amassada. Massa disforme, por onde escorria um líquido acinzentando em meio ao sangue. Olhos arregalados, fora de órbita, me encarando. Jurando-me suplícios eternos do outro lado. Corpo jogado na sarjeta, o sangue escorrendo para dentro de um bueiro. Não deu sorte: foi com a cabeça direto na guia. Não me senti culpado, desta vez. Senti-me bem, mais calmo, leve, relaxado. Adoraria um banho quente. Até teria me encaminhado para um hotel e tomado um, se não fosse o porteiro do meu prédio (valeu aí, Sr. João) ter visto toda a cena e botado metade da polícia da cidade me cercando com armas em punho.

Veio o linchamento.

Veio a prisão.

O julgamento.

A sentença.

E esta cela acolchoada, onde não há formação de ventos que me mandam fazer as coisas.

O resto, é história.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 25/11/2010
Reeditado em 25/11/2010
Código do texto: T2637098
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