OS FILHOS DO COVEIRO

Não existia melhor lugar do mundo para Randa que o cemitério. Nessa hora ela se sentia sortuda por ser a filha do coveiro. Após cumprir suas obrigações de casa ou chegar da escola ela corria para ficar passeando entre as lápides. Tinha horas que sentava em cima de algum tumulo e parecia conversar com quem tivesse enterrado ali. Era essa a impressão que se tinha se alguém visse a cena de longe.
A pior hora do dia era quando tinha de ir a escola. Randa não gostava de ficar entre os vivos, preferia a companhia daqueles que já haviam atravessado a linha da vida. Geralmente esses seres compreendiam melhor o sentido da vida e o significado maior do bem e do mal, do certo ou do errado assim como do fato de estar vivo e morto.
Randa na escola optava por ficar isolada, não tinha amigos. Falava o essencial com colegas de sala e professores. Além disso, não era do tipo bonita. Era magra, alta para sua idade, tinha 13 anos e estava com quase 1,70. O semblante era pálido, corpo esquálido, cabelos negros, lisos e longos, grandes olhos castanhos claros e brilhantes, bochechas salientes, nariz pequeno e altivo, rosto com feições rústicas e sobrancelhas grossas e semicerradas.
O isolamento espontâneo de Randa despertou o interesse dos outros alunos que começaram a chamá-la de “filha dos mortos”, pelo fato dela ser filha do coveiro, morar no cemitério e já ter sido vista por alguns dos alunos em dia de finados sentada nos túmulos a conversar com os mesmos. Essa atitude dos colegas fez Randa ojerizar ainda mais a escola e assim criou o hábito de faltar ou inventar desculpas para o pai para não ir. Então, ela de vez em quando inventava dor de cabeça, dor de barriga ou qualquer outra coisa para não frequentar a escola. Com isso evitava o bullying e conseguia também ficar no lugar que se sentia mais a vontade, tranquila e feliz. Junto dos túmulos, entre os mortos, as flores deixadas pelos vivos, as outras plantadas pelo pai, cruzes, lápides e as confissões dos desencarnados que apenas ela ouvia.
Um belo dia de sol Randa passeava nas lápides quando ouve uma voz conhecida e tem uma surpresa ao ver seu irmão que fugira de casa aos 15 anos. Baldo tinha espirito aventureiro como a mãe deles, que fora moradora de rua. Ela por um instante relembra que o pai contara certo dia ao abrir o cemitério para um dos muitos dias de finados que já houve no mundo encontrou uma mulher dormindo bem na entrada do grande portão de ferro que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Ele tentou acordá-la, contudo sem sucesso resolveu mexer nela com as mãos e constatou que a mulher estava inconsciente. Era uma moradora de rua conclui Aldino Zandré Filho, pelas vestes da mulher. Dono de um bom coração o coveiro a apanhou nos braços a carregou para dentro do cemitério levando-a para a sua humilde casa e após colocá-la na sua cama, procurou algum ferimento que explicasse o desmaio. Não obteve sucesso e foi aí que teve a ideia de molhar o rosto da mulher com água. Ela despertou de imediato e ao ver pães em cima da mesa correu para agarrá-los comendo em seguida com voracidade. Aldino percebe que a mulher estava era faminta e por isso desmaiara daquela forma.
A partir dai ela foi ficando, ficando e ajudando nos afazeres domésticos. Ao mesmo tempo eles iniciaram uma amizade meio esquisita e na mesma casa a noite sozinhos não demorou para eles estarem relacionando-se sexualmente. Antes claro a mulher que dizia se chamar Morina foi se mostrando pouco a pouco atraente. Com roupas modestas, mas novas e cuidados básicos de higiene ela foi mostrando que ainda tinha viço e certa beleza, visto que ainda era jovem, devia ter no máximo 35 anos.
Desse contato nasceu Baldo e Randa. Contudo nem o nascimento desses conseguiu prender a mulher que acabou indo embora sem deixar vestígio de sua presença ou indícios de seu paradeiro. Aldino só lembra que nesse dia Randa estava ardendo em febre e chovia torrencialmente. Morina se ofereceu para ir a farmácia comprar algo para a filha, Aldino deu o dinheiro e ela foi para nunca mais voltar.
E assim o coveiro Aldino criou os dois filhos sozinhos. Baldo o mais velho tinha a mania de sumir e numa dessas não voltou mais, na época estava com 14 anos. Já tinha se passado quase 10 anos. Ele fugira menino e agora voltara homem de barba na cara, corpulento e alto como a mãe. Aldino lembra que dava no ombro de Morina.
Randa fica feliz pela chegada do irmão, a mesma sensação não é compartilhado pelo pai, que pressentia algo de ruim no ar com essa volta.
Os dias se seguem sem alterações para o coveiro e sua filha, a não ser pelo fato de Baldo sempre querer está perto da irmã. Randa como sempre vivia entre as lápides, nos seus devaneios, divagações e fantasias.
Na hora do jantar Baldo a sós com a irmã pergunta como quem não quer nada se ela ainda ouvia os mortos, ou seja, se ela ainda falava com os mortos.
A pergunta deixa Randa assustada e ela tenta desviar o assunto.
A veemente insistência do irmão coloca Randa contra a parede e ela diz:
- Qual o motivo de sua pergunta Baldo? Se você já sabe a resposta, afinal não veio aqui por isso?
- Por causa de mamãe... já faz tanto tempo que ela sumiu, que pensei que você não a ouviria também? Pois julgo que ela esteja morta.
- Mamãe não está morta Baldo, se é isso que quer saber... ela diz secamente.
- Então se ela está viva, você não gostaria de reencontrá-la Randa?
Randa não responde a pergunta do irmão e fica em completo silêncio. Continua o que estava fazendo como se quisesse se poupar de perguntas e respostas, sejam elas quais fossem.
- Você não quer partir comigo para juntos tentarmos localizá-la?
- Se ela quisesse está perto de nós não teria partido e como estamos no mesmo lugar, quando ela quiser voltar, ainda encontrará todos nós aqui. Menos você que parece não ter vindo para ficar, não é Baldo?
- Não vim mesmo, você sabe que não gosto desse lugar, não gosto de morar num cemitério, de ser filho de coveiro da cidade e de uma moradora de rua, eu odeio as minhas origens, odeio ser quem sou e o que sou. Eu fugi daqui para esquecer disso tudo e com a fuga descobri apenas que é impossível fugir de nós mesmo, carregamos nossas chagas, nossas escaras e nossas maledicências com a gente...
Randa novamente nada responde e o seu silêncio é como uma fala para o irmão.
- Na escola eu vivia brigando por causa disso, por isso não quis mais frequentá-la e parti. Não aguentava aqueles olhos me censurando, me praguejando, me condenando de algo que não sei o que é e do qual eu não tenho culpa, sou vítima assim como você.
- Então porque voltou? Ela quer saber receosa pela resposta.
- Por você, por mim e até pelo coveiro nosso pai. Eu estou namorando a filha do dono do circo que vivia vindo aqui quando éramos crianças, lembra? Foi a ele que me juntei desde a minha partida...
- Continue... pede ela.
- Eu gostaria de te levar comigo para você trabalhar no circo como uma grande atração sobrenatural: “a filha dos mortos”. Eu sei que você deve passar pelo mesmo que eu passei na escola, que sofre por ser a filha do coveiro. Se para mim era difícil imagine para você que é mulher e com essa aparência frágil e esquisita, fora o seu isolamento que é algo tão gritante. Então agora você tem a grande chance de se ver livre disso tudo e ainda por cima ganhar dinheiro. Podemos mudar de vida e mais tarde tirar papai dessa vidinha deprimente de coveiro e encontrar a mamãe.
- Você não está pensando em mim, papai e muito menos na mamãe, está pensando em si mesmo Baldo. Você nunca a perdoou por ela ter nos abandonado aqui sem explicação e quanto a papai você não liga para o que aconteça com ele, senão não teria ido embora deixando ele aqui sozinho com uma criança tão pequena para cuidar. Eu tinha apenas seis anos quando você se foi, e papai deve de se desdobrar para cuidar do cemitério e ainda de mim... e não quero sair daqui e deixá-lo. E de onde tirou isso que falo com os mortos, eu apenas sei respeitar os que se foram e o lugar onde eles estão enterrados. Já que a maioria não respeita nem os vivos, nem o próximo, nem os familiares, nem ninguém.
- Por favor, Randa, eu sou seu irmão, nasci antes de você e sei do que falo. Uma vez eu cuidava de você e numa distração você sumiu. Eu fiquei aflito para te achar antes de papai descobrir. Ai comecei a te procurar, após alguns minutos escutei uma vozinha, era a sua falando com uma lápide...
Randa não deixa o irmão terminar e corre pro quarto e se tranca. Ela chora baixinho até adormecer. Nos minutos seguintes antes de pegar no sono, ela pensa no que ouvira na semana anterior a chegada do irmão dos mortos. E tudo se encaixa de maneira assustadora. Baldo voltara e estava fazendo e dizendo tudo igual como as vozes disseram. E caso fosse o seu destino trágico estava próximo assim como o do irmão, de algumas outras pessoas do circo e até mesmo do pai. O seu conhecimento prévio dos fatos era a única alternativa para impedir as mortes, mas para isso ela teria que fazer um imenso sacrifício. Teria que ficar sem o que lhe dava maior alento, o que dava sentido a vida e de sua missão tão importante para os dois mundos. Ela não saberia se teria forças e coragem para fazer o que precisava. O mal estranhamente poderia deter o mal. Randa adormece profundamente e sonha com a mãe depois de tantos anos. Ela estava com a cabeça no colo da mesma e esta a acalentava, passando a mão no seu cabelo carinhosamente. De repente Randa acorda sobressaltada com o vento batendo a janela. Ela levanta, vai até a mesma e abre-a devagar e pula para o outro lado. Na escuridão da noite ela sai caminhando pelo cemitério como sempre fazia desde que começara a andar e some no breu entre latidos de cachorros, piar de corujas e a luz distante da lua.
No outro dia bem cedinho o coveiro Aldino levanta. Passa o café forte como de costume e toma uma xicara com dois pãezinhos. Ela espera a filha sentado junto a mesa já que o cheiro do café a fazia levantar todos os dias. Passado alguns minutos o coveiro estranha a ausência da filha, levanta mais que depressa e empurra a porta do quarto e nada, está trancada. A filha nunca trancava a porta do quarto. Ela sai de casa para ir até a janela do quarto da filha e a vê aberta e quando vê a cama vazia entra em pânico. Desesperado Aldino começa a vasculhar o cemitério e finalmente a encontra caída junto a uma lápide. Ele corre em seu auxilio e ao puxá-la contra si vê sangue e nota dois pedaços de madeira finos metidos em cada ouvido de Randa.
Aldino leva a filha para casa e chama a ambulância. Nisso Baldo chega, pois passara a noite na rua e vendo o pai desesperado oferece-se para ir com a irmã na ambulância. Embora relute um pouco Aldino acaba permitindo, visto que não podia deixar seu posto de trabalho daquela forma, ainda bem que o filho estava ali ele agradece aos céus.
No hospital Randa recebe os cuidados necessários, é medicado e fica em repouso na enfermaria. Antes faz alguns exames objetivando avaliar a extensão da lesão. Transcorridos uma hora, o médico plantonista do dia vai falar com Baldo e informa que Randa ficara surda para sempre e o que fora isso ela está fora de perigo.
Baldo recebe a noticia como um soco no estômago. Vendo que sua permanência ali era desnecessária ele vai embora desolado. Em casa ele arruma a mochila, antes dá a notícia sobre a irmã tranquilizando o pai. Em seguida avisa que Randa terá alta em dois dias e também que vai embora. Ele puxa o pai contra si e o abraça com força, nesse instante seus olhos enchem-se de lágrimas. Num rompante ela solta o pai, vira as costas e parte. De longe o coveiro acompanha o filho caminhando rumo à saída do cemitério. Já no portão de entrada, Baldo ouve o pai gritar seu nome. Ele volta-se e o pai corre em sua direção. Mais uma vez eles se abraçam com força e no meio da emoção ele diz que precisa ir para não causar mais mal nenhum a quem quer que fosse. E que daqui para frente ele só faria isso consigo mesmo e mais ninguém. Baldo empurra o pai e sai caminhando do cemitério rapidamente. Em certo momento após alguns metros ele para e olha para trás e sente que aquela é a última vez que verá o mundinho do coveiro e sua filha. Então se vira e prossegue a caminhar com mais rapidez ainda e desaparece na estrada sob o sol do meio dia para nunca mais voltar.

ZARONDY, Zaymond. VIZZÕES. São Paulo: Grupo Beco dos Poetas & Escritorees Ltda., 2017.
ISBN 978-85-5610-013-9
Zaymond Zarondy
Enviado por Zaymond Zarondy em 24/11/2010
Reeditado em 22/02/2019
Código do texto: T2634896
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