Memórias de um Homem Inexistente

Decorria o ano de 1983, quando meu desaparecimento deu-se por concluído. Não ocorreu de uma só vez. Ao contrário. Meu corpo se esvaiu aos poucos, com a pele, outrora marrom e bronzeada, adquirindo lenta e gradativamente aquela têz particular de ouriço defumado. Descoloriram-se primeiro os braços, a começar pelo dedo mindinho. Nos dois primeiros dias adquiriu uma tonalidade esverdeada, que incidiu da ponta da unha, ramificando-se em pequenas veias esverdeadas até o anelar e em seguida até o médio. No quinto dia o martírio já se instalara de fato, e a mão direita inteira fora recoberta pela camada de aspecto peculiar. Meus pais tencionaram me levar ao Sr. Ariovaldo, curandeiro e Doutor por execução impropria da profissão, cuja vasta experiência prática, ainda que rendesse méritos consideráveis, não era vista com bons olhos perante as autoridades sanitárias e pela pequena parcela da população relativamente civilizada. "Mal de Parto" disse, assim que notou as manchas dispersas aglomerando-se sobre as protuberâncias da pele, sem sequer se aprofundar em uma analise mais detalhada. Receitou-me doses cavalares de comprimidos efervescentes, sucinto em afirmar que o tratamento correto traria de volta a têz particularmente agradável de minha pele.

Na semana seguinte o primeiro traço de dispersão manifestou-se no decorrer do banho. Ao usar o esfregão nas reentrâncias das unhas notei, perplexo, o resultado do que parecia ser uma nova etapa da enfermidade que me acometia. O dedo mindinho apagou-se, como que arrancado por uma ferramenta invisível e indolor. Porém, ao explorar mais detalhadamente o local onde deveria se insinuar uma unha, senti o comichão apertar-me o dedo que, até então ainda não existia, mantendo-se oculto, invisível, denunciando sua presença ali apenas pelo estimulo dos músculos que permaneciam vivos, ainda que incolores. Voltamos, de pronto, ao consultório do Dr. Ariovaldo, que nos recebeu com a cara lisa e o sorriso amarelo, já de praxe. Garantiu-me, com toda a pompa medicinal, que a invisibilidade temporária do meu mindinho era resultado do efeito colateral da medicação por ele ministrada, e que se extinguiria, no mais tardar, nos próximos cinco dias. "Não há com o que se preocupar" garantiu em meio a terceira ou quarta dose de pinga. "Ajuda a acalmar os nervos" - Desculpou-se, com um sorriso amarelo e um piscar de olhos desajeitado.

Diferente do que o Dr Ariovaldo pregara, a enfermidade não se extinguira nos dias seguintes. Ao invés disso, ramificara-se rápido feito uma praga de proporções bíblicas, e já no décimo quinto dia após o inicio de meu martírio a mão direita inteira fora consumida pelo desaparecimento misterioso. Do toco que havia sobrado, o interior do braço era visível, inoportuno, com as ramificações oséas se estendendo para fora de maneira grotesca, anormal. Fui aconselhado por meus pais a não sair nas ruas, já que sempre que o fazia as pessoas me olham de esgoela, riam, caçoavam e cochichavam impropérios inaudíveis, ofensas em sua grande parte.

Apregoando-me as rédeas daquilo que futuramente consideraria como bom senso, abracei os conselhos paternos e abstive-me da companhia alheia, mergulhando na solidão do meu quarto. Mantive as persianas fechadas, de modo que permitia transpassar por elas luz suficiente apenas para manter-me a par das condições meteorológicas exteriores. Recebia a visita dos meus pais cada vez com menos freqüência. Diferente do que imaginava, meu novo aspecto peculiar não suscitou neles nenhum tipo de intranquilidade maior. Seguiam suas rotinas diárias como se nada muito fora do comum se estabelecesse ali, e a medida em que aumentava o grau da minha enfermidade passamos a nos encontrar apenas nas raras vezes em que esbarravam em alguma parte não visível do meu corpo.

Depois do vigésimo terceiro dia, meu corpo de adolescente robusto fora minimizado há um par de pés, caminhando solitários por entre um quarto escuro e vazio. Passei a me despir de minhas roupas, incomodado pelo calor excessivo dos dias do verão que se aproximavam e a alimentar-me com dificuldade, já que não gozava mais dos auxílios outrora desperdiçados por meus familiares. No trigésimo dia meu corpo havia desaparecido por completo. Após um mês de martírios, eu já não mais existia. Minha presença era denunciada apenas pelo par de calças, da qual eu fazia uso vez ou outra, vagando vazias pelos corredores da casa. Tornei-me um fantasma em minha própria morada, assombrado pela impotência das raras, e ainda assim homeopáticas, doses de afeição disseminadas por minha mãe, que remoía as lembranças futricando em fotos antigas, procurando se lembrar do rosto esquecido do filho desaparecido.

Por fim, decorridos seis longos e sofríveis meses, anunciei com a voz tremula e arrastada, a beira da porta entreaberta, que sairia para comprar cigarros. Virei-me e sai, fitando o sol claro de um céu com tímidas nuvens dispersas se espreitando no horizonte. Estava nu e sentia o vento frio batendo-me no peito. Caminhei até uma ponte nas imediações de minha casa e ali estacionei, fitando as aguas do rio correndo por baixo de minhas pernas inexistentes durante longas horas, antes de me por a transcrever essas ultimas memorias. Prontifico-me a deixa-las para a posteridade, caso encontrem, boiando nas margens desse rio de águas diáfanas, os contornos daquilo que um dia já fora o corpo de um homem.

FIM

Edilton Nunes
Enviado por Edilton Nunes em 20/11/2010
Reeditado em 20/11/2010
Código do texto: T2626975
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