A Bailarina da Praça
Ele estava se aproximando da porta da cantina da empresa quando ouviu um grupo de funcionários tecendo comentários nervosos:
-Carlinhos, sabe o que a Rita do ‘RH’ falou para a Maria Clara do almoxarifado?
-O quêêê? A Rita abriu a boca? Aquela ali não conta nada nem sob tortura... Aí tem... O que foi?
Incontinente ele parou. Apreensivo... Com receio de ser flagrado ouvindo a conversa dos ‘colegas’ por detrás da parede, deixou-se dominar pela curiosidade ao que parecia ser a fofoca do dia, a manchete da Rádio Corredor. O fato de trabalhar na empresa há somente vinte dias aliviou-lhe, em parte, a consciência. Afinal, ainda não estava enturmado.
-Ela disse que em razão da queda das exportações, motivada pela alta do real em relação ao dólar, o faturamento da empresa caiu substancialmente.
-Sim! E daí?
-Daí, meu amoooor! Que vai haver corte de pessoal.
Pairou um silêncio sepulcral na cantina.
Em frente ao bebedouro alguém deixou cair um copo d'água. No balcão um tossiu ruidosamente. E na mesa ao lado da estufa de salgados, vários comensais pigarrearam.
De repente foi um arrastar de mesas e cadeiras por toda a cantina e todos se acercaram da amiga do Carlinhos.
-Como é que é?
-Corte de pessoal?
-Como assim?
Arrependida da inconfidência, e já prevendo a baita bronca que, certamente, levaria da Maria Clara, do almoxarifado, a amiga do Carlinhos olhou-o bem dentro dos olhos e esclareceu o que todos teimavam em não entender.
-Demissããão, meus queridos... Alguns, dentre nós, vão receber o famoso “bilhete azul”. Alguém aqui não sabe o que é “bilhete azul”? Eu explico... Carta de Recomendação, meus amores.
-E a sabichona aí, portadora da Caixa de Pandora, sabe qual é o critério que será adotado para a entrega dos “bilhetes”?
Olhando alguma incorreção na pintura, muito vermelha das unhas, a locutora da Rádio Corredor respondeu fazendo-se indiferente:
-Olha meu amooor! Pelo que eu lembro, na última crise cambial, que eu escapei e espero me safar nessa tambééém, o critério adotado foi o seguinte: primeiro, eles “presenteiam” os empregados mais novos de ‘casa’, principalmente aqueles que ainda então em experiência, os mais antigos custam mais caros, e aí não faz sentido fazer contenção de custos, não é messsmo? Depois, eles vão avançando, estais-me entedeeendo, dos mais novos aos mais antigos.
O resto do dia para ele foi um tormento sem fim. Refez vários relatórios. Instado a se explicar pelo chefe, gaguejou e ficou sem saber o que dizer em várias ocasiões.
Finalmente, o expediente acabou e ele foi para o ponto de ônibus situado frente à pracinha do bairro.
E ficou ali, sentado no banco do ponto do coletivo com as mãos sobre o rosto pensando no inusitado de sua situação. ‘Cara, estava tudo indo tão bem. Até que enfim, depois de meses, tinha conseguido um bom emprego. A esperança era, devagar, conseguir ir pagando as contas... E agora essa?’
De repente, ao seu lado, do nada, surgiu uma mulher jovem, até que bem bonita... Vestida de bailarina.
Ela deu alguns passos para lá e para cá, depois, postou-se à sua frente, ficou ereta e sorriu. Em seguida, juntou os calcanhares, abriu os pés e flexionou os joelhos incrivelmente, e, sempre sorrindo, saltou. E ele muito tempo depois não soube explicar como, viu a bailarina girar sobre o eixo do corpo fazendo uma pirueta no ar. Aquele movimento espetacular o deixou meio tonto.
A bailarina, sempre sorrindo, deu mais um salto, as duas pernas abertas, uma para frente, a outra para trás, em perfeita simetria.
Meio hipnotizado com a graciosidade daquela estranha bailarina ele, longe, bem longe, ouviu um estalar de dedos. Era a bailarina, à sua frente, com a mão fechada, que lentamente ela abriu. E no meio da palma da mão estendida surgiu uma flor.
Com uma graciosa reverência a bailarina segurando a flor com os dedos polegar e indicador a ofertou para ele.
Tal qual um “partner”, ele encarnando o teatro que se configurava à sua frente, recebeu o presente, beijou-o e levou-o ao coração fazendo uma vênia sorrindo enternecido.
Quando levantou a cabeça a bailarina tal o éter jogado ao vento tinha desaparecido, evaporado.
Surpreso, olhou ao redor e viu somente os outros passageiros que esperavam a condução.
-Inacreditável! O que foi que aconteceu aqui? Alguém viu para onde ela foi? Ouviu-se perguntar a um e outro.
-Viu o quê, cara?
-‘Tá ficando maluco.
–Aí, ó...! Mais um “noiado” na praça.
-Ô mermão? Andou cheirando o quê? ‘Tá maluco, rapá?
Atarantado ele segurava as pessoas pelos ombros indagando.
-Não é possível! Ninguém viu a bailarina que estava dançando aqui...
Na calçada... Agora... Na minha... Na nossa frente?
-‘Tô falano... O doidão aí fumou alguma coisa diferente... É melhó a ‘gente’ se afastá dele...
Ainda desnorteado e arfando, o coração aos pulos, ele sentiu alguém segura-lo delicadamente pelo cotovelo e levá-lo de volta ao banco do ponto de ônibus.
O desconhecido entregou uma pequena garrafa de água mineral para ele.
Depois de alguns goles engasgados ele ouviu o desconhecido dizer baixinho, perto do seu ouvido.
-Não adianta... Eles não a viram e, provavelmente, nunca vão vê-la.
-Como assim? Não viram e nunca vão vê-la?
-Meu caro! Somente uns poucos privilegiados a vêm. E você, pelo jeito, é o mais agraciado de todos, recebeu, inclusive, uma flor.
-Agraciado? Eu? Meu amigo agradeço muito pela água e pelo apoio, mas você está de gozação comigo.
-Não estou não. O que você viu, aconteceu realmente, eu também a vi.
-Agradeço mais uma vez pela força... Mas... Quer saber? Vai tirar sarro de outro... Amigo, eu tive um dia terrível, e, como as coisas estão acontecendo, a noite vai pelo mesmo caminho.
-Meu camarada... Você foi agraciado pela Bailarina da Praça.
-Bailarina?
-Sim, a Bailarina! Ela só aparece para quem, realmente, está angustiado. Dá uma olhada ao redor, cara. Dá uma olhada nesses rostos. O que é que você está vendo? Olha bem. Todos estão mergulhados, cada um, nos seus problemas. A solidariedade acabou. E o que foi que o espírito da praça fez? Pegou a alegria das crianças que brincam no parquinho aqui da praça e criou a Bailarina.
-‘Tais de brincadeira com a minha cara...
-Estou não. Há algum tempo atrás eu estava desesperado, cheio de problemas. Um dia, assim como você, estava aqui, neste mesmo banco. Sentado. Assim como você, com as mãos cobrindo o rosto. E ela apareceu... Minha reação foi igual a sua.
-Sim... E daí?
-E daí? E daí, é que quando eu cheguei à minha casa, de algum modo, eu consegui resolver os meus “pepinos”. Não me pergunte como. O que eu sei é que foram resolvidos.
O ônibus do desconhecido chegou e ele embarcou. Ele, sem saber o que dizer ficou olhando o desconhecido passar pela roleta.
Quando o coletivo iniciou a partida ele ainda ouviu o desconhecido, com a cabeça para fora da janela, gritar.
-Fica tranqüilo... Você foi agraciado.
Quando ele chegou ao apartamento, acabrunhado, sem saber como dar a notícia da possível demissão para a esposa, ela o recebeu com um forte abraço e um caloroso beijo.
-Amor! Sabe aquele ‘curriculum’ que você mandou para aquela multinacional no início no ano? Pois é! Eles ligaram. Marcaram uma entrevista. Não é o máximo?