SOMBRAS
SOMBRAS
- Diga-me se estou certo. Você esteve ontem em Tobias?
- Sim, estive em Tobias.
- Então minha intuição foi verdadeira?
- Não sei. O que eu sei, é que estive em Tobias.
- Pois bem, e sua esposa como vai?
Houve um silêncio, mesmo diante do barulho da Praça Fausto Cardoso no horário de pico. Terêncio não sabia o que dizer. Ficou um pouco confuso. E tremia os lábios quando sua resposta lhe saltou à mente.
- Bem, sim, muito bem. Por quê?
O motorista do carro que se aproximava do terminal da Rodoviária Velha se olha no espelho retrovisor, admira seu bigode e diz:
- Por nada, foi apenas uma pergunta, desculpe.
- Márcia está bem, às vezes, sente presenças; estou lhe dando na hora certa os medicamentos. De qualquer forma obrigado por perguntar. Disse Terêncio.
O jovem tobiense desceu do carro e despediu-se de seu colega. Ele ainda conservava a boa forma dos dias do futebol; ele fora um bom atleta. As mulheres nutriam um verdadeiro fascínio por ele. Ele comprou uma passagem, se sentou em um banco, e ficou a olhar o seu ticket. Nesse estado de espírito Terêncio permaneceu por alguns minutos. Um rapaz que sempre está na rodoviária se aproximou e ofereceu seus préstimos de engraxate.
- Moço que engraxar os sapatos? Os deixarei brilhando!
- Não, obrigado.
- Faço um preço camarada.
- Sei.
- É o melhor preço do lugar.
- Não, obrigado. Responde Terêncio com indiferença.
Nunca se sabe o que se passa com as pessoas. O rapaz continuou com seu olhar vago pensando sobre um mundo que parece desabar sobre sua cabeça. Ele amava sua esposa, e nunca pensara que um dia as coisas seriam tão difíceis.
- Terêncio! Terêncio!
- Sim, oh, como vai? Um rapaz nascido em Campos desperta Terêncio de seus pensamentos.
- É um prazer te ver rapaz! Está bem? Terêncio não estava nem um pouco interessado naquela conversa. Contudo interage por educação.
- Estou. E você? Perguntou o jovem atleta apenas por proforma.
- Bem também.
- E a vida, Carlos? Você vai a Tobias?
- Não, vou à Estância. O telefone celular toca. Carlos se afasta um pouco para atendê-lo. Conversa ao celular em voz baixa por uns minutos, e retorna para o atleta Terêncio com o rosto um tanto pálido e se despede.
- Meu ônibus chegou. Abraços rapaz! Apareça!
- Certo. Quem sabe amanhã a gente se encontra. Disse o jogador de futebol.
Olhando novamente a passagem, Terêncio descobre que seu ônibus sairia uma hora depois do horário que ele esperava. “Puxa estou desatento, comprei a passagem para a hora errada”. “Fazer o que?” Encostou-se o tobiense no banco e relaxa finalmente. Caiu no sono, neste viajou para algum lugar. Lá, estava Márcia, sua mulher. Seu corpo deitado no chão, ensanguentado, com ferimentos semelhantes a facadas profundas. O lugar estava cheio de moscas, tudo ao seu redor exalava um cheiro cadavérico. Ao ver esta cena, o jovem Terêncio cai em pânico e desperta de seu sono.
- Terêncio!
- Sim?
- Seu ônibus está para sair.
- Quem é você? Como me conheces?
- Como assim, não lembra?
- Não.
- Não tem problema, vamos!
Durante a viagem, o rapaz nada pergunta a mulher que está ao sentada seu lado. Ela era bonita; possuía feições finas, testa grande como o povo de Itabaiana. Por todo o percurso até Tobias ela se manteve calada. O mesmo fez Terêncio, nada disse. Tobias estava na época daquela garoa fria. O céu sempre nublado com momentos rápidos de sol. Estava o povo da terra ocupado com seus afazeres por isso não viram o grande filho retornar a terra mãe. Ambos tomaram um taxi para o Walter Franco, um conjunto habitacional de classe média. A casa era reformada e muito espaçosa. As janelas estavam fechadas e nada de sol para tirar aquele cheiro estranho do ar.
- Sei que é difícil, mas, você precisa reagir.
- Como assim, reagir?
- Bem, se troque, depois conversamos!
- Por que precisamos conversar?
- Será melhor para você não fazer perguntas agora.
Muitas coisas acontecem no mundo. As pessoas nem imaginam o que pode ocorrer a uma mente fraca e frágil como a humana. A casa estava vazia fazia dez anos. Mas não conservava o mesmo ar da época em que ali havia muita felicidade.
- Gostou da comida?
- Muito boa, disse o jogador de futebol.
- Muitas vezes estivemos aqui.
- Foi? Não lembro.
- Por que você não lembra?
- Não sei.
Enquanto os dois conversavam chegaram algumas pessoas estranhas. Abriram a porta e ocuparam a casa com muita facilidade. Uma senhora alta, bem vestida, põe seus objetos sobre a raque da TV, e conversando com seu esposo entram no quarto. Falavam alto, mas parecia que havia alegria entre ambos; deram muitas risadas. Caminhavam por toda a casa; se sentaram à mesa sem dar importância ao casal que havia chegado primeiro. O estranho casal janta, logo em seguida, vai para sala de TV. Assistem as notícias, em seguida inicia-se uma conversa entre ambos.
- Terêncio está na Bahia, amanhã ele retorna. Disse a moça bonita.
- Estás com medo? Perguntou o rapaz que a acompanhava.
- Não, não é isso, acho que devemos tomar cuidado!
- Por quê? Somos livres e o que fazemos não é crime.
- Já foi um dia, ainda consta nas leis, embora ninguém a leve mais a sério.
- Você fala de adultério? Ninguém liga mais para isso! E se ele realmente gostasse de você, ele sempre estaria ao seu lado. E o dinheiro que você me prometeu emprestar, onde está?
- Olha, eu prometi, mas primeiro vamos acertar nossas vidas e aí eu terei o dinheiro.
- Terêncio jamais vai te deixar viver comigo, sempre fomos amigos, isso vai ser uma confusão.
- Não, não acredito, ele é um cara dócil, não é dado ao álcool ou a violência, além do mais, ele me ama, e quando se ama se perdoa.
- Você realmente crer nestas coisas?
-Sim, creio.
Pouco tempo após esta conversa o casal vai ao quarto e se cala por um bom momento, e a casa volta ao silêncio de antes.
- Terêncio! O que há com você, você se calou e me deixou falando sozinha.
- Não sei, acho que me lembrei de alguma coisa, mas, não faz sentido.
- Acho que você está voltando a lembrar-se das coisas.
- Que coisas?
- Não sei. Só você pode nos contar.
- Lembro-me de uma partida de futebol. Nosso time estava ganhando no primeiro tempo. No intervalo recebi uma ligação de Tobias e depois não consegui mais jogar direito e o time visitante ganhou a partida; todos esperavam uma reação minha. Recebi muitas vaias.
- Mas não foi sua culpa. Disse a mulher procurando confortá-lo.
Aquele olhar vago e triste se apodera do rapaz e o leva novamente para dentro de si. E de repente um barulho vem do quarto de casal. Há uma discussão lá dentro, o casal de amantes se desentende e inicia-se uma briga verbal que ganha forma de uma luta corporal até ouvirem-se gritos abafados de socorro. O silêncio só retorna quando se ouve um baralho de um corpo caindo ao chão. A porta abre-se e o amante da moça sai com uma sacola em uma mão e uma faca na outra.
- Terêncio, você está pálido novamente! O que aconteceu?
- Não sei, mas é melhor olharmos o quarto, ouvi alguma coisa. Há alguém aqui.
- Não, estamos sós. Estamos sós como sempre foi.
- Afinal, quem é você? Perguntou Terêncio a moça que o acompanhva.
- Você não lembra?
- Não. Mas, é melhor você ver o quarto de casal.
- Você quis dizer o nosso quarto?
- Como nosso quarto? Você não é a Márcia.
- Como não? Você não me reconhece?
- Márcia está doente e está tomando remédio, eu mesmo cuido dela.
- Não, tudo isso é coisa de sua mente.
- Por favor, não duvide de mim. Conheço minha mulher.
- Está bem vamos olhar o nosso quarto.
Terêncio e a mulher foram até o quarto principal da casa. Chegando lá nada encontraram, exceto, uma garrafa de whisky e um copo sobre um criado-mudo cheio pela metade.
- Não pode ser, tenho certeza que ouvi um barulho vindo daqui.
- Foram os ratos.
- Como? Nunca teve ratos aqui. Isso eu me lembro. Eu não estou louco.
-Não estou dizendo que você é louco. Apenas que você pode ter se enganado, isso é normal.
- E quanto a você? Você não é Márcia.
- Eu sou quem sempre fui; e moramos aqui nesta casa.
- Isso não é verdade. A casa é a mesma, mas juro por Deus, deve estar havendo um engano.
- Como, engano? Eu sei quem sou.
- Eu também sei quem sou.
Será que todos nós sabemos quem somos nesta curta vida que passamos pelo mundo? O casal continuou a discussão até esgotarem todas as chances de se entenderem. Terêncio se calou novamente e pegou o copo de whisky e tomou lentamente seu conteúdo enquanto sua suposta esposa preparava a cama.
- Vamos deitar? Perguntou a mulher um tanto triste.
- Vamos, estou com sono.
O casal, ou os dois, ou sei lá quem eram, deitou-se na mesma cama e não se tocaram. A mulher pegou no sono primeiro, enquanto isso, Terêncio pensa o momento de sua vida. Ele sempre fora um bom rapaz. Quando criança teve uma para- da respiratória e os pais o levaram ao médico que aconselhou à prática de esportes. Seus pais o levaram ao campo do Amadense, e de lá o rapaz ganhou o Brasil. Foram bons tempos para Terêncio. Fama, dinheiro, mulheres, amores. Ele se acostumou a estas coisas. Vinha a Tobias ver seus pais sempre quando podia, mas um acidente de carro na curvinha do pau-preto ceifou o elo poderoso que o ligava a Vila de Campos. Depois disso Terêncio mudou-se de casa e alugou um apartamento em Salvador. Quando ele conheceu Márcia, consolou-se da falta dos pais, e decidiu comprar uma casa no Walter Franco. O bom filho sempre retorna à sua terra. Os anos no Walter foram de intensa felicidade. Contudo Márcia reclamava muito de sua ausência. Ele estava sempre viajando para cumprir a tabela do Campeonato Brasileiro de Futebol. Terêncio não conseguiu pegar no sono e levanta-se da cama. Anda pela casa sentindo-a estranha. Ouve um barulho no quarto onde a mulher que se diz ser Márcia está deitada. Vai ao banheiro e atrás da banheira encontra uma faca suja de sangue. O rapaz ficou muito assustado. Segurou a faca em sua mão direita. E continuou sua breve viajem pelos cômodos de sua casa. O quintal da casa era amplo e havia um lugar onde havia terra. Parou, fez xixi, e virou-se para retornar ao quarto. Seus olhos por acidente se depararam com uma sacola de papel de tamanho médio do tipo usada para fazer compras em lojas finas. Caminhou em sua direção, pegou-a e abriu-a, e dentro desta havia uma quantia muito alta em notas de cem reais. Eram cinqüenta mil reais. O rapaz pensou: “O que isso está fazendo aqui?” Correu de volta para o quarto com a intenção de perguntar a mulher estranha. Ao entrar no quarto este estava vazio.
- Terêncio! Terêncio!
- Sim?
- Dormiu bem?
- Tive um sonho eu acho.
- Foi? Depois você me conta, vamos tomar café?
- Quem é você?
- De novo a mesma pergunta?
- Eu só tenho a mesma resposta.
O dia foi longo para Terêncio. E deve ser para muita gente neste mundo de Deus. Terêncio escondeu a faca com medo de usá-la. E o casal continuou naquela casa até que um dia todos sumissem como sombras enfraquecidas pela falta de sol...