De pau e corda
De pau e corda
j f da costa filho
Era a Quinta Sinfonia. Beethoven me olhava de soslaio, com ar interrogativo, preso na esverdeada rigidez do bronze. Os músicos ocupavam os seus lugares, todos atentos ao meu gesto inicial para atacarem a partitura. Conheciam eles a minha predileção pelos instru-mentos de pau e corda. Metais me recendiam a coisas marciais. E eu, escapo da ditadura, pensava sempre três vezes antes de qualquer afinação com a militança. Imbuído de tal sentimento, pensei repetidamente em retirar da orquestra tudo o que não fosse madeira e corda. Meu assistente opunha-se.
- Como, caro maestro, vai o senhor conseguir o grand finale sem o clangor dos trompetes, dos trombones, das trompas e dos pratos?
Aborrecia-me a petulância do vice-regente. Ora, ali estava um homem refém da tradição musical. Nem ao menos uma tentativa de fuga às regras assentadas durante anos se poderia esboçar? pensava e interrogava-me eu.
De repente, o estalo. Os bumbos, os celos e os baixos iriam explodir no fecho da peça. Olhei Beethoven, como a consultá-lo, e o vi de semblante fechado, os supercílios arremetidos para as alturas da tes-ta. Assustei-me. Mas não recuei. Era outro ranzinza, apegado às marcas do seu tempo.
- Rabugento! gritei-lhe, enquanto o ameaçava com a batuta.
O brado e o gesto renderam-me olhares estupefatos de toda a orquestra.
Então, caminhamos para o soberbo desfecho. Fiz silenciarem os metais, abri os braços num gesto largo e dirigi a batuta, com ve-emência, em direção aos paus e cordas, pedindo-lhes alma e vibração.
- Vovô, é hora de voltar. O pessoal do Santa Edwirgens está a esperá-lo na sala, interrompeu o remate da peça a minha neta Marga-rida.
Aquiesci. Naquele tempo, eu era manso e pacífico.
--------------
Nota ao leitor: Caríssimo, lembre que a minha colaboração para
este RL é de textos abstratos. Portanto, é difícil identificar COMEÇO,
MEIO e FIM nessa escrita. Essa parte é por conta e risco do leitor.
Cordialmente, costa filho.