A MÁQUINA

Havia desaprendido a escrever, não havia duvidas. A simples visão do teclado da maquina lhe enchia de um estranho e inexplicável medo.

Acontecera de repente. Sem a menor explicação. Ele fora deitar-se mais tarde naquela noite, varias doses de uísque a mais que o usual, dois pedaços de rocambole e pronto, apenas isso havia alterado sua tão pragmática rotina. E cá estava ele agora tendo calafrios diante da maquina de escrever.

Não que fosse um mago das palavras ou um paladino das letras, mas publicava três vezes por semana uma crônica em jornal muito bem quisto pela comunidade, o jornal, não necessariamente sua crônica.

Estava paralisado, não que isso não houvesse acontecido antes, mas não nessa intensidade, era algo tão brutal que nesse momento chegava a beirar o desespero, um desespero que ele não sabia explicar com palavras, nem mesmo com gesto algum, uma estranha paralisia dos sentidos, dos movimentos mecanicamente treinados há anos a fio, frutos da robótica atividade de ir socando o teclado da maquina de escrever.

Não sabia o que pensar. Não que também fosse dado a grandes pensamentos, ou raciocínios profundos, não nada disso, o que ele buscava no momento era uma resposta simples, pueril e até mesmo inocente para aquele medo abjeto que acabara de vazar de suas entranhas em dose homeopáticas.

Era bem verdade que nesse momento não tinha o menor motivo para se sentar a frente da maquina, não era o dia em que costumava escrever suas crônicas, e nem mesmo que o fosse não estava com inspiração alguma, então donde conclui-se que não haviam motivos plausíveis para que ele tivesse adentrado ao pequeno cômodo que lhe servia de escritório, talvez se não o tivesse feito, poderia estar salvo desse medo súbito, desse desespero gritante.

Tentou sair do cômodo ainda em penumbra, a maquina era banhada por uma mítica luz pálida que entrava por uma brecha na veneziana antiga, o que fazia com que ela parecesse ser um ser autônomo em meio a todo o resto, os livros, os CD’s os antigos compactos e LP’s, que se espalhavam por duas pequenas estantes de madeira já gastas por muitos verões. A maquina ali, parada, estática, olhando para ele com seu teclado anestesiado, em meio aquele silencio gutural, parecia ser dotada de vida própria, uma rainha pousada sobre seu trono, reinando, somente observando os súditos, e naquele momento cobrando reverências.

Havia comprado aquela maquina de segunda mão, em uma espécie de venda de garagem, um brechó, fora amor a primeira vista, majestosa ela se destacava dentre todos os objetos a venda, única, a harmonia de suas linhas era obvia, despertou-lhe de imediato comoção, uma emoção simplória, sem malicia alguma ele a levou para casa, a pousou no centro da escrivaninha, bateu delicadamente em seu teclado, como se fosse o teclado de um piano de cauda, limpou-a, toda, com um pano umedecido, somente então colocou a primeira folha de papel e escreveu a primeira palavra, seu nome, não por narcisismo, ou qualquer espécie de ego inflado, não, nada disso, apenas teclou sem perceber muito bem o que estava fazendo, o que importava era a magia, o som quase que meramente ruminante que emergia das entranhas da maquina, quase uma canção, uma espécie de poesia de metais sustenidos.

Ele se deliciou e se dedicou aquele momento unicamente sereno, sentia brotar uma paz estranhamente cálida de cada ruído daquelas engrenagens antigas, uma placidez que lhe invadia cada um dos poros e se transformava imediatamente em comoção, uma emoção simplesmente inexplicável, somente traduzida pela já muita gasta expressão amor a primeira vista. Sim, era o que havia acontecido. É fato conhecido e inerente a crônica humana esses tais rompantes, essa mistura de emoções conflitantes que transformam um único momento em apenas um pálido reflexo, ou retrato, da eternidade, transformando o que é efêmero em um carrossel de cavalgada infinita.

No entanto nessa manha toda aquela magia do primeiro encontro parecia ter escapado pela fresta da veneziana antiga, como um relacionamento já sem amor, um casamento de aparências, onde um apenas suporta o outro, onde um simples esbarrão gera um conflito, era assim que ele começava a pensar, sua relação com a velha Olivett parecia ter se desgastado sem que ele percebesse, a força de muitas crônicas escritas nesses tantos anos parecia ter minado a relação antes tão profunda e tão mágica, tendo a transformado apenas em um casamento frustrado, no entanto, algo lhe dizia, intimamente que essa não era a explicação, pois o que sentia era medo e não somente a tão como comum ojeriza que costuma tomar conta de dos homens nessas situações.

O que o intrigava é que havia limpado a maquina carinhosamente na véspera, antes de tomar algumas doses de uísque, havia lhe passando um pano úmido por todo o seu corpo, nos espaços do teclado, limpado tão delicadamente a barra de espaço, acariciado a tecla TAB, olhado com a mesma comoção de sempre para corpo metálico e estático, ali no centro de sua mesa de pinho, cercada de papeis, anotações, fragmentos do eterno sonho adiado de escrever um romance, o desafio que o instigava a anos, e se o viesse fazer seria ali, em seu teclado plácido que dedilharia todas as palavras, capitulo após capitulo, seria ali que mergulharia para a aventura do romance, seria dali que pularia sem para quedas e sem medo algum. Mas agora o que mais tinha era medo.

Mecanicamente acende um cigarro, a mão tremula mal consegue manter a chama do isqueiro acesa, ela tremula na penumbra, tremula como a maioria dos músculos de seu corpo, como o sangue em suas veias, como o ar que sai de suas narinas e que parece retornar rarefeito para dentro de seus brônquios.

Olha para a maquina. Olha para o relógio. Olha ao redor. Tudo está igual a todas as manhas dos últimos anos. Procura nos bolsos a chave da porta do escritório. Coloca-a na fechadura e roda, fecha a porta tranca a maquina la dentro, sozinha, perdida entre livros e discos antigos. Ainda fuma caminha em passos trôpegos rumo a seu quarto. Coloca novamente outra chave na porta, dessa vez a porta do quarto. Gira a chave dentro do tambor. Tranca-se ali.

Separa-se

Divide-se

A maquina lá. Ele no quaro.

Separados.

Unidos somente pelo medo que ele sente sem saber o porquê.

03.outubro.2010

Odair J Alves
Enviado por Odair J Alves em 03/10/2010
Código do texto: T2535312
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