A CABANA DOS SONHOS

PARTE I

Manaus

A floresta, tal qual a de uma lenda chinesa, abrigou certa vez um belo pássaro, que num mergulho com asas fechadas, voou em direção à mata, fugindo de um predador. Fez uma manobra radical, adentrou o interior mágico da floresta e pousou exatamente em uma tênue linha imaginária, que divide o tempo presente, real, do tempo fugidio, imaginário. Fundiu-se, em silêncio profundo com o verde da mata e seu olor. Seu perseguidor que vinha muito próximo, assustado com um forte relâmpago, abriu as asas e perdeu-se n’uma subida vertiginosa quase cega pela claridade do raio, rumo às nuvens escuras que anunciavam uma tempestade, e que aumentavam a escuridão da noite que chegava. E o trovão reboou, correndo rápido para o horizonte, levando consigo o frustrado predador.

. Um vulto cambaleava imposto pela força do vento apressado, sem destino, como a escapar da pesada chuva que cairia. Noite. Tempestade. Ventos e relâmpagos.

O homem caminhava pela suposta estrada na noite escura, perdido dentro de si. Tentava, nos seus passos incertos, juntar as peças de seu passado distante, estilhaçado como um espelho que já não duplicava mais a imagem corretamente, pois faltava um pedaço aqui, outro acolá. Cambaleava, seguindo direção nenhuma e contra sua vontade, acompanhava o balanço das árvores. A chuva obrigou-o a segurar o chapéu e o casaco, e a procurar abrigo para passar a noite.

Uma nota publicada no jornal relatando um evento sobre arqueologia brasileira registrou o desaparecimento do Dr. Dresley Davis Foreman. Conceituado arqueólogo americano, que aceitou vir ao Brasil conhecer o trabalho da equipe de pesquisas no sítio arqueológico Vale dos Dinossauros, em Santa Cruz, no alto sertão da Paraíba; E também a participar de simpósios e aulas, já que entendia a importância da arqueologia acadêmica. Alto, com traços que definiam bem o perfil de um pesquisador, olhos claros, com senso de observação direta, instantânea, inquisidores, porém serenos.

Estava no país há pouco tempo, e já conhecia quase todos os sítios arqueológicos do Brasil, como A Gruta do Gentio(MG), o Parque Nacional Serra da Capivara, localizado no sudeste do estado do Piauí, Toca da Boa Vista, localizado no município baiano de Campo Formoso, sendo a maior caverna conhecida do Brasil e do Hemisfério Sul, 13ª maior galeria do mundo, sempre participando de programas de pesquisa . Apesar de intensa atividade, sentia-se muito solitário; sem filhos, e sem sua querida esposa, Star Deep Foreman, famosa geneticista e mundialmente conhecida, que desaparecera em um terrível acidente, quando juntos pesquisavam um sítio arqueológico na África do Sul. O mundo científico se abalou com o fato, pois ela era uma jovem obstinada em um projeto audacioso sobre uma nova espécie de hominídeos, a Astrolopithecus, supostamente conhecida como sendo o “elo perdido” da evolução entre os símios e os seres humanos, a Astralopithecus.

Dresley e vários colegas da equipe de pesquisas, embarcaram num avião com destino a Manaus. Durante uma semana, participariam de palestras sobre o papel da arqueologia inserida em questões como Gestão Ambiental, preservação dos sítios arqueológicos, e a real importância de um projeto juntamente com outras áreas do conhecimento, atuando imediatamente na prevenção e preservação do planeta. A viagem foi tranqüila, e na chegada puderam ver o curioso encontro dos rios Negro e Solimões, que correm juntos sem que se misturem suas águas, e sobrevoando a cidade, construída em plena floresta amazônica, ficaram encantados.

Já no Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, foram recebidos por uma comissão que os conduziria ao Hotel Ariaú Amazon Towers, onde promoveriam palestras, não só sobre arqueologia, mas também sobre a importância das pesquisas de um modo geral, em todas as áreas do conhecimento humano. Aproveitaram naquele mesmo dia , juntamente como grupos de outros paises, para conhecer a bela cidade de Manaus. Sentiu-se mal quando os repórteres insistiram no questionamento sobre o ocorrido com sua esposa, lá na distante África do Sul, e o sentimento de culpa novamente o atormentou, desvanecendo todas as expectativas que a semana prometia.

Após as entrevistas, saiu a caminhar sem rumo, na tentativa de que a noite fria acalmasse seu coração, diluindo tristes recordações. Estava caminhando já há algum tempo e sentiu-se perdido. Era um vulto que caminhava sem destino.

Atravessou um pedaço de floresta e sentiu sob seus pés, a terra preparada para o plantio. Deve haver uma casa por aqui, deve haver, falou consigo mesmo; e o clarão do relâmpago que riscou o céu, mostrou seu porto seguro. Andou em ziguezague para lá, com o vento que o empurrava em direção à cabana que avistara, na foto instantânea.que o mau tempo tirara.

Parou. Procurou na escuridão uma porta onde bater. Já estava encharcado de água e de tristezas, mas, continuava a tatear, palmo a palmo sem parar, nas paredes frágeis de madeira, até que em um golpe de sorte, achou a porta. Bateu várias vezes, tentou forçá-la, pois ninguém atendia, quando ela abriu-se subitamente. Tropeçando, adentrou violentamente e caíu estatelado no chão.

Tudo estava escuro. A casa, ele, e só a chuva que caía achava o caminho pelos espaçados clarões dos relâmpagos.

Lutava contra a força da tempestade que insistia em entrar casa adentro. E, num esforço desesperado, fechou a porta e ficou atento.

Agachou ali mesmo onde estava, analisando seu interior.

Estou só, afirmou para si mesmo. No clarão prateado de mais um raio, divisou o que parecia ser um corredor comprido, quase sem fim.

O vento chocava-se com persistência contra o abrigo, compondo música de terror dentro daquele espaço.Ouvia atentamente, e um frio percorreu seu corpo. Resolveu não se aventurar pela casa e sentou-se. Encolheu as pernas, enterrou seu chapéu, que por milagre conseguiu que ficasse em sua cabeça, e tentava domar o frio que o dominava.

Mesmo em meio a tanta adversidade adormeceu, fatigado, embalado pela rotina da tempestade. A chuva forte, corria pra lá e pra cá, molhando aqui e acolá, dançando, molhando tudo ao seu redor e os trovões ainda respondendo aos clarões dos relâmpagos.

E sonhou. Sonhos encharcados de tristeza, pesadelo que assistia inerte, gelado.

De repente, em uma hora qualquer da madrugada, ouviu uma batida na porta. Ficou atento. Mais uma batida!

Alguém forçava a porta, como ele também o fizera.

A cena se repetiu. Alguém foi atirado para dentro da casa, impelido pela fúria do vento. A porta bateu fortemente em sua perna, pois estava sentado logo na entrada. Levantou-se rapidamente e mais uma vez usou a força para fechá-la.

— Quem está aí? Perguntaram-se ao mesmo tempo, como em um dueto harmônico formando uma terceira voz.

— Quem é você? Insistiu o primeiro invasor.

—. Sou apenas uma menina inserida neste temporal que parece não ter fim. E você, como está? O medo o gelava ainda mais. Dois intrusos engolidos pela escuridão presa no interior da casa.

—Foi muita sorte de que encontrássemos esse abrigo, não foi? Falava no tom de quem quer cativar amizade, pois era assustadora a companhia de um estranho, naquela hora da madrugada.

— Não precisa ter medo de mim, meu senhor. È claro que não podemos fazer mal um ao outro, não é? Estaremos juntos aqui só até o amanhecer; depois sigo meu caminho com a missão cumprida. Um silêncio quase sem fim fez-se entre eles.

— Mas, disse ainda Dr. Dresley: O que uma menina tão pequena como você está fazendo aqui nesta floresta e a esta hora?

Onde está sua mãe, e como se chama?

— Bem, vamos começar pela minha idade: agora tenho seis anos, meu nome é o mesmo de minha mãe, e ela está bem longe daqui, muito longe...

A escuridão de dentro da casa era diferente daquela lá de fora; era quase palpável, quase luminescente, certamente mágica.

— Bem, mocinha, e como sua mãe se chama?

— Bem, Sr. Dresley, ou melhor, Sr. “cara de tatu”, meu nome é Star. Mas eu era chamada de vaga lume pelos meus amigos de colégio; bem mais bonito que o seu, não acha?

— Mas, como sabe meu nome? E também meu apelido que somente minha esposa conhecia? E Star era o nome dela...

— Sim, eu sei, ela é minha mãe!.

— Como? Perguntou ele estupefato, sentindo sua voz trêmula; Nós não tivemos filhos! Então é uma coincidência que sua mãe também se chame Star, não é? Mas e o meu apelido, como o soube?

— Minha mãe colocou esse apelido em você, porque vive escavando, ficando horas e horas em cavernas escuras, não é verdade?

Antes que ele respondesse, um clarão riscou o céu, iluminando o rosto sorridente de Star, ar zombeteiro de menina travessa.

Respondeu juntamente com o trovão que anunciava o fim da tempestade:

— Certamente estou delirando! Não bastasse a tragédia em que perdi minha querida esposa, de não ter encontrado seu corpo mesmo em buscas incessantes, alucinantes por um bom tempo, agora essa menina, zombando de mim!!

— Calma meu amigo. Vou ajudá-lo a entender tudo o que se passou, disse a menina, com segurança e doçura na voz.

( continua )