Nascimento...
Essas ondas de luzes que tremeluzem a minha visão impedida, não são estranhas. Não agora. Só posso ouvir os sussurros e sentir a lamina afiada me cortando, embora não haja dor suficiente pela provável anestesia. Mesmo com impossível aleijamento que eu sofrera. Só imagino tudo isso, como uma vontade louca.
Posso sentir a minha dor, não a dor física, essa já não poderia ser sentida agora, mesmo que não houvesse substancia sedativa no meu organismo. Sinto a dor interna, a dor impossível de ser sanada nem com o mais poderoso dos medicamentos. Sinto que irei morrer e que a deixarei nesse mundo completamente sozinha como eu sempre fora.
Posso imaginar tantas coisas. Onde eu estou? Sei onde estou! Posso enxergar a sala branca e brilhante como a luz do sol. O movimentar intenso e rápido ao meu redor e o calor dos corpos tentando salvar uma vida. A minha vida. Não a minha, a que eu gerei.
“Não, não permitam que ela sofra”, esse é apenas o meu ultimo pedido. “Não permitam. Sei que ela poderá prosseguir sem mim, e sei que eu não irei com ela. Lembro-me muito bem de tudo, sei que ela está só e que todos nós partiremos sem ela.”
O movimentar, a conversa e o som de My Chemical Romance no rádio, de repente me tomaram por completa, assim como o forte cheiro de tabaco e cervejas grudadas ao estofado do carro de Meg. Atrás, a pequena Maggie tagarelando alguma coisa inocente e eu segurando a minha barriga grande demais. Eu posso lembrar.
“Câncer”, sendo cantando com intensidade na voz dramática de melodiosa de Gerard. O meu cantor favorito me fez encher os olhos de lágrimas em meio a letra dolorosa da triste condição em que se encontra o personagem da historia.
As luzes amareladas, o sinal fechado e toda a névoa petrificante que deixara os vidros do carro brancos como um presságio são familiares. Então eu nos vejo atravessando a rua e o enorme carro em choque com o nosso. Todo o pavor, o meu rosto em choque com o vidro, a minha espinha sendo impossibilitada e todo o sangue.
“Mas ela tem que viver mesmo só. Mesmo sem nós.”
Egoísmo meu? Eu poderia pedir que não a deixassem nascer, pois talvez, essa fosse à única solução, a mais eficiente sem dúvida. Porém o meu instinto jamais deixaria que ela fosse interrompida por alguém, não, eu jamais permitiria que ela morresse, mesmo que ela viesse a sofrer. Então, que ela seja feliz, eu peço... Mas como eles não podem me ouvir, esses pedidos soavam como desespero mortal dentro dos meus ouvidos enquanto eu sabia que o fim já estava próximo.
As vozes, a luz, o tilintar dos instrumentos metálicos sendo jogados na bandeja hospitalar com força. A pressa para que o procedimento fosse rápido, para que a minha filha fosse salva me deixavam confiante para o sucesso da operação.
- Não podemos deixar que o bebe morra. – uma voz murmurou ofegante e eu pude ouvir com clareza. Pelo menos, de algum modo, alguém compartilhava do mesmo desejo que eu. Estava mais do que evidente nessa voz áspera e penetrante.
- Está quase.
- Sim. – a voz áspera respondeu para a voz feminina. – Já a peguei.
Então era isso. Ela havia nascido? Eu poderia ir então agora?
- Uma menina. – disse a voz feminina.
- Linda.
Ela havia nascido. O meu bebe, a minha filha. Como descrever a sensação que eu sentira ao ouvir o seu choro baixinho penetrando os meus ouvidos com o seu timbre melodioso. Como não chorar, mesmo estando impossibilitada? Eu não queria sofrer por isso. Agora eu poderia ir com certeza, mas porque não? Eu teria que sofrer mais nessa condição? Mesmo que eu sobrevivesse, eu sabia que não poderia cuidá-la, os meus movimentos já me haviam sido tomados, ou, talvez houvesse esperança de que a minha família sobrevivera. Não. Eu sabia que não.
- Ela vai ficar bem? - uma pergunta preencheu o silencio.
- Desejaria que sim, mas não posso mentir para mim mesmo.
- Quanto tempo?
- Algumas horas.
Então, eu senti, eles estavam falando de mim e eu tinha que vê-la. Pelo menos uma única vez, eu tinha que ver a minha filha. “abra os olhos”... Eu desejei, com tanta intensidade, mas não era possível, eu estava morta ou morreria logo, mas eu tinha que vê-la.
Com o mais puro e genuíno instinto, aquele que eu jamais imaginei experimentar, eu senti a luz branca penetrar as minhas pupilas quase dilatadas e a vi chorando no canto da sala. Ela estava suja de sangue, seu rosto simétrico, e as suas sobrancelhas desenhadas, mesmo tão pequenas. Tão linda e viva. Ela era eu. Os meus olhos verdes nos dela, estava claro que sim, ela não seria como o pai, ela só tinha a mim, talvez ele a encontrasse, mas não, ele jamais cuidaria dela, quando seu egoísmo não permitia que ele cuidasse nem dele mesmo. Minha filha. Tão linda.
- Ela abriu os olhos. – de repente a voz áspera, pode ser associada àquela imagem.
Um jovem médico com olhos cor de chocolate e cabelos pretos me passaram uma sensação muito boa de confiança, mas eu não podia vê-lo direito, a minha visão estava cada vez mais turva, ou talvez, o sangue que cobria o meu rosto estivesse impedindo-a.
O jovem me olhou, mas quase evitando, mesmo para ele, o meu rosto desfigurado era assustador.
- Como pode? – a voz feminina perguntou com revolta.
- Ela está acordada, erraram na dosagem do sedativo?
- Não. Eu me certifiquei de tudo.
Se eu estivesse com movimentos faciais agora eu sorriria. E poderia tentar murmurar alguma coisa, um pedido para aquele jovem, mas também não conseguiria.
Então eu dormi.