"nada é por acaso"
A cidade de Tutóia, às marges do Rio Parnaíba, amanheceu mais agitada do que nunca.
Sentado à sombra de uma árvore abraçado à mochila de cor cinza, nem percebe quando ela se aproxima. A saia jeans curta surrada, deixa à vista as pernas de cor morena queimadas pelo sol, as tranças quase vermelhas, insistem em permanecer em evidência mesmo como o imenso chapéu, traçado em folhas de carnaúba, sobre a cabeça. O sol é forte, de um lado e outro da rua, um movimento intenso de quem chega e sai; velhinhos recebendo suas aposentadorias na agência do Banco do Brasil, mochileiros, gente da comunidade, todos parecem movidos por uma energia que os deixa elétricos. A bela moça desce a rua em busca de um 4x4 que a leve até Paulino Neves. Pára diante dele e como se o conhecesse vai logo perguntando:
- Onde pego uma condução pra Paulino Neves?
- Eu também vou pra lá a Toyota sai daqui a quarenta minutos, acho que ainda tem vaga.
Decidido ele levanta-se vai até o motorista sentado um pouco à frente e num diálogo rápido acerta tudo.
- Tudo bem, tem vaga!! - Diz sorrindo.
- Obrigada! - Ela responde mostrando o belo sorriso.
- De nada, pelo menos agora tenho com quem conversar nas próximas duas horas. Primeira vez que vem a Paulino Neves?
- É sim, estou pesquisando sobre umas tartarugas que só existem nesta região. Descobri na Internet e fiquei curiosa. E você ?
- Muito prazar - Sorri - Eu sou Igor e estudo Climatologia na Usp, to aqui pra estudar movimento das dunas.
Continuam convertsando por mais meia hora como se fossem velhos conhecidos, até serem interrompidos pelo motorista.
- Ei pessoal, vamos tá na hora.
A toyota, com bancos improvisados de madeira, já mostrava uma grande quantidade de passageiros, em sua maioria idosos de comunidades circunvizinhas. Os dois correram até o carro. Ela joga a mochila na correceria e pede ajuda do moço para subir. Ele a apoia pelas ancas, empurrando-a suavemente, enquanto se ajeita no banco deixa à mostra o vão das coxas. Ele vira o rosto meio encabulado. Entreolham-se e sorriem sem graça. A estrada que leva a Paulino Neves é basicamente de Areia, passando por povoados de pescadores. No meio do caminho uma cidade quase fantasma, Tutóia Velha. Outrora esta era a Tutóia onde todos moravam e realizavam suas atividades normalmente. A proximidade da Tutóia nova com o Rio Parnaíba e o mar, provocou a mudança.
Entre risos e fotos do caminho a viagem segue tranquila, salvo pelos solavancos do carro rompendo as pequenas dunas do caminho. Já passava do meio dia quando chegaram na cidade.
A visão era de paraíso; a ponte de cimento armado sobre o rio de água límpida e correnteza forte é de cara um convite a bom banho. As mulheres lavando roupa, os homens cuidando dos cavalos, o sol forte, coqueiros enormes margeando o rio, um cenário perfeito. A toyota atravessa a ponte parando na quitanda da esquina. Os dois descem e buscam informações junto aos curiosos.
- Alguém sabe onde tem uma pousada por aqui? - pergunta o rapaz.- Um moleque em trajes de banho e pele muito queimada pelo sol se oferece pra informar e levar até ela.
- é o seguinte, se o senhor e sua namorada quiserem ficar perto do rio, tem a Pousada D'areia, tem também uma que fica perto das dunas, eu posso o senhor.
- Os dois trocam olhares diante da conversa do menino, conversam rapidamente e decidem pela que fica próximo das dunas.
- Legal, ali na frente tem um jipe, mas se quiserem ir andando não é muito longe, é logo alí.
- Acho que vamos de jipe mesmo o sol tá quente e precisamos descansar - responde. Cinco minutos depois chegam à pousada, toda coberta de palha traçada caprichosamente. O dono, um paulista simpático vem recebê-los na entrada.
- Sejam bem vindos. Ah! o mensageiro é por conta da pousada.
Enquanto conversam ela lança um olhar em volta vislumbrando a paisagem de deserto. bem à frente as dunas, atrás delas o mar.
- Vamos entrando - insiste o dono da pousada - Quarto casal ? - pergunta.
- Não, somos apenas amigos, acabamos de nos conhecer em Tutóia.
- Ah!, desculpe - Diz o moço meio sem jeito.
- É que só temos um quarto, diz com ar de preocupação.
- Não faz mal - Diz ela - lá dentro a gente divide o espaço, não temos mesmo muita bagagem.
Ele sente o coração disparar diante da afirmação da moça, mas finge que tá tranquilo - Então, pra mim tudo bem.
Ela apanha a mochila e vai em direção ao quarto.
-Preciso urgente de um bom banho. Se importa se eu for na frente ?
- De jeito nenhum, acho que vou tomar um cerveja.
-Legal, então até mais.
-Já estamos falando há alguns minutos e ainda não sei o seu nome.
- Yamamoto, mas pode chamar yama senhor.
- Tem camarão por aqui Yama? -
- O melhor camarão senhor e a primeira porção é oferta da casa.
- Melhor ainda. Com este nome você não deve ser daqui.
- Sou de Sampa, vim por aqui estudar movimento de dunas e nunca mais voltei, trouxe minha noiva, já casamos, temos dois meninos...
- Engraçado, eu também sou de São Paulo e estou aqui pra fazer a mesma coisa.
Os dois sorriem muito diante da coincidência.
- Então Yama, temos muito que conversar.
- E a moça, que fora hein?, não sabia que era só amiga.
- Nos conhecemos em Tutóia, ela está aqui pra pesquisar tartarugas raras que existem por aqui.
- Ah! muita gente já passou por aqui por causa dessas tartarugas.
A conversa rola solta por mais quarenta minutos. Só são interrompidos pela voz da moça quem vem em sua direção. O cabelo molhado evidencia ainda mais o tom quase vermelho, usa só um batom muito vermelho, a canga transparente deixa à mostra as formas generosas, calça uma sandália feita de talos de buriti, planta nativa da região, riquíssima em gordura.
- Pelo jeito a conversa tá boa.
- é verdade dona...como é mesmo seu nome?
- Ainda nem deu tempo de falar, Yara Sanches, muito prazer.
- O meu é Yamamoto, muito prazer.
- E o meu é Igor. Bem, já estamos apresentados, vou lá dentro tomar um banho e volto pro almoço, essa cerveja me abriu o apetite.
- Vou mandar preparar uns peixes que acabaram de chegar da praia. A propósito a senhora gosta de peixe.
- Me chame de Yara, Yama. E eu adoro peixe, nada de carnes por estes dias.
- Seja feita a sua vontade Yara. Você quer tomar alguma coisa, cerveja, suco?
- Um suco, alguma fruta da região pra me indicar?
- O suco de cajá á caprichado. Com ou sem leite ?
- Com leite, por favor.
Enquanto ela espera pelo suco, lá dentro Igor tenta disfarçar a sensação de espanto diante das ações tão decididas da bela Yara. Mil coisas passam pela sua cabeça e nenhuma delas tem a ver com movimento de dunas. O movimento daquelas ancas o toque na subida do carro, o cheiro de patchouli...tudo o deixava animado - Preciso focar minha mente no trabalho - falou baixinho, como se quisesse convencer-se disso.
Banho terminado, colocou uma bermuda surrada, camiseta com a marca da "fiel", óculos escuro e rumou para a área do restaurante. De onde estava, ela levantou discretamente os olhos fitando-o dos pés à cabeça e voltou rapidamente a atenção para a livro, no Ipod "I've got to see again" de Norah Jones.
- Nossa, que água maravilhosa. O que a senhorita lê com tanta tenção ?
- Frijot Capra - a Teia da vida.
- Mais louco impossível ?
- Por quê ?
- Tô só brincando, esse cara já me deu um nó no cérebro defendi trabalho sobre ele. Ainda não entendo direito o que escreve.
- Na verdade Igor, muito do que ele escreve só vai ser entendido daqui a muito, muito embora tudo já esteja acontecendo.
- A propósito de nossas pesquisas, o Yama é paulista, veio pra cá estudar movimento dunas e nunca mais voltou.
- Jura?
- Claro!
- Viu, Capra tá certo!
- Ei pirou , o que tem a ver Capra e Yama ?
- Muita coisa; Capra, Yama, Eu e você. Nós fazemos parte de uma grande teia, mesmo sem saber. De um jeito ou de outro, acreditemos ou não, as coisas acontecem de forma sincronizada. Se nós voltarmos o fio da meada de nossas vidas até este momento atual, vamos perceber que existe uma lógica acontecendo para que estivessemos exatamente aqui e agora. Os mais céticos, acham que é loucura e outros vão dizer que é pura coincidência, acaso, entende. Mas pra mim tudo faz sentido. Nós tinhamos que vir pra esta pousada e não para aquela perto do Rio, há sincronicidade nestes fatos aparentemente desconexos. O que nos impede de ver, é que nossa visão é meio 3x4. Se nós ampliarmos nosso campo de visão, vamos perceber que tudo se encaixa.
- Como assim ?- Ele interroga estupefato e admirado.
- Feche os olhos Igor. Agora volta as imagens de hoje e mais alguns dias, como se tu estivesses voltando um filme. Agora saia do chão e tente enxergar estas cenas do alto, como se você estivesse operando uma câmera com um zoom fenomenal. Você não sabe, mas eu também vim de São Paulo. De que aeroporto você partiu?
- De Guarulhos ? - responde.
- Eu também!
- Saí no vôo das 18:30.
- Eu também, só que no dia seguinte.
- Como você chegou a Tutóia ?
- Peguei carona, mas o cara que me deu carona tinha coisas a resolver em São Luis, por isso tive que esperar até a noite.
Eu saí do aeroporto por volta de uma e meia da manhã e fui direto pra Rodoviária. Nós partimos de São Luis de lugares diferentes, mas no mesmo horário provavelmente. Eu cheguei, procurei um local pra tomar banho, pois ainda estava com mesma roupa que botei em São Paulo, por isso custei a chegar naquela praça onde ficam os carros.
- Sim e daí ? - pergunta ainda perplexo.
- Quantas pessoas haviam naquele local?
- Umas mil e quinhentas, acredito.
- Pois bem, não pense que enlouqueci. Por que eu tive que escolher exatamente você pra perguntar sobre o carro?
- Sei lá, eu tava até cochilando.
- Sincronicidade, a teia estava se formando, como um holograma.
- Ah!, esse papo tá fundindo minha cuca.
- Nada é perfeito - Diz ela decepcionada.
- O quê?
- Nada não, posso tá enganada e você não é obrigado a aceitar o papo de uma estranha que você acabou de conhecer.
- Ei mas também não é assim, Fale mais sobre este holograma.
- Tá bem, primeiro tenho que dizer, que não acredito que a vida começou no berço e que vai terminar no túmulo.
- Ah!, já li alguma coisa dita por Kalil Gibran.
- Legal, você leu Gibran. Bem, no momento de nosso retorno para uma nova experiência carnal é feita uma grande reunião, nela são convidados todos aqueles que vão cruzar com você, digamos assim, na descida. Os pais, amigos, e até desfetos, todos são conscientizados do que vai acontecer; provações doenças, relações entre todos são traçadas minuciosamente, e com o entendimento e aprovação de todos descemos. Ocorre que ao voltar a existência material passa-se uma esponja na lousa e perdemos muito de nossas percepções de pessoas, rostos, sentimentos. Assim vamos, como eu diria, procurar agulha no palheiro, mas de olhos vendados. Durante a nossa existência, todos aqueles que aceitaram fazer parte deste processo vão cruzando com a gente; uns estão bem perto, outros vêm de outras cidades, outros estados e até de outros países, isto por que todas as experiências de cada um, quando conectadas estarão a serviço de uma idéia conjunta, entende ?.
- Acho que sim - Balbucia.
- Ah!, a nossa vida atribulada, reuniões, pagamentos, corre-corre, nos impede de uma concentração que nos permita perceber os sinais.
- Sinais?, você quer dizer que existem sinais que demonstram este tal de holograma?
- Sim!, as vezes sentimos ao avistar uma pessoa no meio da multidão, que já a conhecemos, outras vezes uma frase falada nos faz estremecer quando pronunciada por certa pessoa e por aí vai.
Tão envolvidos pela conversa estavam que nem perceberam que Yama estava parado um bom tempo com uma travessa de peixes caprichosamente disposta.
- Senhorita, senhor.
- Hã? - assusta-se Igor.
- A conversa , pelo jeito, tava muito boa.
- É verdade e me consumiu muita energia. A fome duplicou.
- Exagerado - brinca Yara, tomando um prato.
- Se quiserem alguma coisa é só chamar.
- Queremos sim, mas depois do almoço. Preciso saber sobre as pesquisas já realizadas com tartarugas e acho que você é a pessoa mais indicada.
- Será uma honra, agora aproveitem a melhor peixada destes lados do mundo.
Os três sorriem e Yama se afasta pra dentro da cozinha. O almoço transcorre um pouco em silêncio, como se ambas quisessem agora assimilar a conversa de minutos atrás....
(continua na próxima postagem)