NUNCA MAIS
Dili andava tranquilamente pelo centro da cidade. Já tinha ido a algumas livrarias da cidade atrás de livros para sua monografia de conclusão de curso, contudo não estava tendo êxito.
Desolada e desanimada, ela decide ir para casa. Afinal já passava das duas da tarde, saíra antes das 9 h. Com certeza sua mãe já teria ido várias vezes a porta ou caminhava pela casa apreensiva.
Na descida da rua onde estava ela tropeça e cai de repente e quando levanta a cabeça olha uma placa com a seguinte inscrição: SEBO SAUDADE, ENTRE E MATE A SUA. A placa inusitada chama a atenção dela no mesmo instante. Após levantar-se e rir do tombo ela num ímpeto decide entrar no sebo. Coisa que ainda não tinha pensado, talvez ali encontrasse o restante da bibliografia para seu trabalho acadêmico. Nos sebos ás vezes tem tanta coisa boa, barata e bonita, o famoso 3B, ela riu de si mesma. Dili vai para a estante da área de humanas e começa a vasculhar. Depois de alguns minutos encontra alguma coisa. No final da estante ela acaba dando de cara numa prateleira de CDS e vinis antigos. Um impulso faz com que ela resolva dar uma olhada. Decorridos alguns segundos um vinil antigo chama sua atenção pela expressividade do titulo: Venha me amar você ai e também pela beleza do cantor. Ele tinha os olhos brilhantes, expressivos e extremamente sedutores, numa maneira que Dili se sente quase invadida por aquele olhar. Sem pensar duas vezes, ela pega o vinil e mergulha naqueles olhos, passeia naquela tez branca e rosada, alisa aqueles cabelos louros ondulados e quase beija a boca vermelha e convidativa da foto da capa. Um estalo faz Dili voltar a si. Ela de novo ri de seu devaneio bobo. Dirige-se ao balcão e paga os objetos que deseja levar. Ela recebe o troco, vira-se com a sacola na mão e de imediato volta-se para a atendente que fica atrás do balcão.
- Moça, por favor, esse cantor aqui, existe outro vinil dele por aqui, ela diz mostrando a capa.
- Não, esse é o único. Ah, você tem como ouvir isso, afinal é vinil e já não existem mais aparelhos por ai?
- Não, de fato, agora que atentei para isso...
- É que tenho um amigo que transfere de vinil para CD, pega o cartão dele, se interessar, se realmente for ouvir isso, caso seja presente para alguém de sua família mais velho como pai ou avó.
- Ok, muito obrigado, ela agradece saindo meio aturdida com a influência que uma foto causara sobre ela, ao ponto de comprar um vinil que nem teria como ouvir.
Dili vai para casa pensativa dentro do ônibus. Quando chega ouve o sermão da mãe pela preocupação que causara. Já no quarto e cansada Dili adormece e sonha. Um sonho agitado, onde andava perdida numa floresta e ouvia alguém dizendo: ouça-me, eu estou aqui. Ela corria ao encontro da voz e nada. Exausta ela para e senta numa pedra que encontrara no caminho. De cabeça baixa ela tenta descansar. Então sente uma mão no ombro e ao virar-se, desperta toda suada. Seu olhar vai direto na direção do vinil, ela então vai até a bolsa pega o cartão e liga. Pega a bolsa e sai de casa, com o vinil na mão.
No dia seguinte, Dili sai da aula apressada, que nem fala com as colegas sobre o seminário de amanhã. Ela vai direto para casa de Alípio, o rapaz que fazia a gravação de vinil para CD, por sorte a casa dele ficava no mesmo bairro que a sua. Após receber o material, ela paga, agradece e sai apressada. Entra em casa nem fala com a mãe direito, corre pro quarto, liga o microsystem e coloca o cd. Ela deita e a primeira música era venha me amar você aí, nome que dava titulo ao LP, era assim que chamavam naquela época. A letra da música era bonita, era na verdade um poema de amor. Dili viaja na música perdida nos olhos do cantor. Ela de novo adormece e sonha. Nesse agora estava no jardim e deitada sobre as flores, ela ouvia de novo um apelo chamando-a de forma veemente, estou aqui, mas não te vejo, qual o motivo não entendo. Ela acorda num sobressalto e toda molhada de suor. Ela pega o notebook, liga e vai direto para o google. Escreve o nome Cazamar e clica em busca. Em segundos é elencado vários itens para sua pesquisa. Ela vai clicando, lendo, lendo, lendo e até relendo.
Cazamar era o nome artístico de Carlos Mário Sardela, um cantor e ator da década de 70. Ele gravara apenas 3 LPs, fizera dois filmes e algumas novelas. Ele tentava conciliar as duas carreiras, mas gostava mesmo era de cantar e tinha como hobbie escrever. A maioria das músicas dos seus discos era de sua própria autoria. Dili entra em sites que tem fotos dele, dos bastidores de shows, de gravações da novela, dele criança, da família, de textos descobertos após sua morte. Um dos sites era mantido pela irmã dele Sara Sardela. Ela clica em contatos e manda um email para Sara. Em seguida ela entra em sebos virtuais e vasculha durante horas até encontrar os outros dois vinis gravados por Cazamar. Ela encomenda, nem se preocupa com o valor, passa tudo no cartão da mãe. Dili parecia obcecada pelo cantor que quando morrera seus pais ainda nem se conheciam. Carlos Mário morrera num acidente de carro viajando de uma cidade para outra em turnê. Pensando nisso e lendo uma carta da irmã feita na época da morte ela chora copiosamente. Ela chora como se tivesse conhecido Carlos, como se fosse amiga, fã, parente e como se o fato tivesse acabado de ocorrer. Dili chora até adormecer e de novo sonha. Dessa vez está num barco a deriva em mar aberto. Fazia um sol escaldante e ela de novo ouve um apelo: sonhe comigo, eu preciso de você, eu preciso de sonhos, eu me alimento deles. Ela acorda assustada, pois reconhecera a voz, era a voz de Cazamar, o cantor morto há mais de 3 décadas. Estaria louca, estaria tendo alucinações, estaria ficando demente ou não, não pior, do que tudo isso. Ela bem sabia que estava apenas apaixonada por um morto. Com o rosto molhado de lágrimas ela corre pro banheiro, liga o chuveiro e entra de roupa e tudo. Ela fica horas lá sentada e só volta a si pela voz do irmão que diz que precisa tomar banho para sair.
Dili continua na internet lendo tudo que pode sobre Carlos, trocando emails com Sara, colhendo informações sobre gostos, intimidades e sonhos do seu novo ídolo, vendo fragmentos das novelas que ele participara no youtube e os clipes de seus sucessos que estouraram na época. O tempo passava e Dili mais se fascinava, se encantava, se eternizava, sonhava e se apaixonava por alguém que já era impossível amar de fato. Ao mesmo tempo com as revelações confirmava que era a alma gêmea de Carlos Mário. Transcorrido uma semana ela recebe os dois vinis, corre para casa de Alípio para transformá-los em CDs. Aos recebe-los ouve atentamente e até canta, pois imprimira as letras que falavam de vida, amor, pessoas e sentimentos. Em especial, ouve repetidas vezes as músicas: Sonhe comigo e Mar dos teus olhos, carros-chefes dos dois discos respectivamente e a qual davam nomes. Mar dos teus olhos a faz se lembrar do sonho. Dias depois ela recebe uma surpresa via correio: Sara, a irmã de Cazamar, reunira os poemas do irmão em um livro intitulado: Cazamar – Casa do Mar de Amor e lhe enviara um exemplar, juntamente com um convite da noite de autógrafos. O motivo marcava os 35 anos da morte do cantor. Dili fica louca para ir, ela precisava conhecer Sara. Sem pensar ela compre as passagens de avião no cartão da mãe escondida, pede dinheiro emprestado aos avós e vai. Através de um email ela avisa Sara que chegará a tarde um dia antes do dia do lançamento do livro.
Sara vai esperar Dili no aeroporto. O encontro de Sara e Dili é comovente, elas se abraçam, ela é viúva e mora sozinha, já que os filhos estão casados. Ela insiste para que Dili fique hospedada na sua casa. Dili aceita na hora, assim ficaria mais próxima de alguém que além de irmã, convivera muito com Carlos Mário, já que Sara fora empresária do irmão.
Sara prepara um jantar para recepcionar Dili e na mesa as duas conversam bastante. Sara então confessa em lágrimas que depois que começara a trocar emails com ela passara a sonhar com o irmão constantemente. Sara por sua vez conta que era para ter morrido com o irmão, contudo ele a salvou dizendo que ela precisava acompanhar a banda e os aparelhos, ele alegou que só confiava nela. Antes de sair de carro ele a beijou e disse que a amava muito, pareceu até uma despedida. Sara falava chorando, ela confessa ainda que tinha uma ligação forte com o irmão e que depois da sua morte sempre sonhava com ele. Mas após alguns anos os sonhos pararam, ela ficou angustiada. Nesse instante ela entendeu que tinha esquecido do irmão, foi quando reuniu tudo que pode dele, criou o site, criou um fã-clube em memória e teve a ideia do livro comemorativo da morte. Ela diz também que encontrou muitos textos do irmão em cadernos e agendas e que está pensando em um outro livro no próximo ano. Após o relato ela pede que Dili explique melhor como alguém tão nova pode gostar de um cantor já falecido e há tanto tempo.
Dili conta sua história detalhadamente para Sara que fica atônita e pede que Dili espere um pouco. Ela traz uma agenda velha e diz que o nome do sebo onde ela encontra o vinil do irmão lembrava uma letra de uma música dele.
“Quando você sentir saudades minhas...”
Quando você sentir saudades minhas...
Olhe pela janela
Veja o brilho do sol
Veja a beleza da lua
Sinta a brisa do vento
Nesse momento eu vou estar contigo
Atente para tudo que te faz sentir viva
Entre no seu interior, agite as folhas dos sonhos
Perca-se em tudo que é capaz de te fazer feliz
Alcance as estrelas e se vista com essa luz
Quando você sentir saudades minhas...
Olhe pro céu, visto que já terei partido
E nunca duvide que lá de cima estarei me alimentando do reflexo dos teus olhos
Olhando e velando por ti de uma forma incontestável
Quando sentir saudades minhas dispa-se do seu eu
Adentre em si mesma e verá minha presença nua e tão sua.
Dili não se contém e chora. Sara a abraça. Elas se reconfortam e ficam conversando até tarde. Pareciam que se conheciam há anos. Uma sensação de conforto toma conta das duas, ambas sentem-se bem e próximas da felicidade plena. Elas bebem vinho e ouvem muito Cazamar. Dili sente-se leve feito uma pluma e sorri muito. Olha fotos de família de Sara, ver Carlos aos 2 anos nu na cama, com a mãe, o pai, e a irmã. Juntas se recolhem muito tarde. Tontas pelo vinho elas adormecem logo. Dili sonha dessa vez não ouve a voz de Carlos Mário, apenas sente que é tomada por uma tranquilidade imensa e uma serenidade indescritível. Ela está num lugar lindo, repleto de uma natureza que exala beleza, uma água cristalina num córrego manso e uma cachoeira onde se banha. O sonho termina e Dili continua dormindo e esboçando um sorriso discretamente.
No dia seguinte, Sara leva Dili para conhecer a cidade, já que a noite de autógrafos seria às 19;00 h. Sara disse que estava nervosa, assinaria como organizadora, já que os textos não eram seus, mas ela sentia-se ansiosa e nervosa como se fosse.
Chega à noite tão aguardada por Dili e Sara. Elas chegam cedo na livraria que era de um amigo de Sara de longa data. Ele as recepciona, oferece água, café e pede que Sara supervisione as coisas para saber se está do seu agrado. Dili passeia pela livraria, folheia alguns livros, resolve comprar um ou dois, lembra-se da monografia. Uma angústia toma conta de si, ela relembra do poema na agenda e ela sente que jamais seria feliz se fosse obrigada a abdicar dos sonhos que a levavam para junto de Carlos.
Começam a chegar gente, Sara cumprimenta a todos. Então se senta na mesinha e logo se forma uma fila para os autógrafos. Dili reconhece alguns velhos ídolos seus de infância já velhos, entre cantores e atores. Então num ímpeto ela decide dar uma volta, passear um pouco pela praça que ficava em frente. Distraída ela não presta atenção que ainda tinha um último degrau e pisa em falso batendo com a cabeça no corrimão da escada. Uma poça de sangue se forma junto a sua cabeça no chão. Alguém que ia entrando grita pedindo ajuda. De dentro da livraria algumas pessoas correm em socorro, inclusive o amigo de Sara. Uma pessoa pega o celular e liga para ambulância.
Quase um ano se passara. Eunice e Gustavo, mãe e irmão de Dili estão no hospital na sala de espera. Eunice chorava e Gustavo a consolava abraçando-a e a reconfortando no peito. Nisso surge o médico que cuidava do estranho caso de Dili.
- Diga doutor, houve alguma melhora com a minha filha?
- Não dona Eunice, continua tudo na mesma. Já lhe disse que vir aqui quase todos os dias não resolverá nada, apenas lhe trará sofrimento. O quadro de Diliane continua o mesmo: ela está em coma devido a pancada na cabeça, os exames não mostram nada de tão ofensivo assim que pudesse causar essa inconsciência. Não foi detectada nenhuma lesão cerebral. O caso de sua filha é estranho, mas tem tantos casos estranhos na medicina, a senhora não imagina.
- Obrigado doutor, diz Gustavo.
- É como se sua filha estivesse em sonho profundo e não em coma, é como se ela estivesse dormindo. E pelo seu semblante é como se estivesse em sono profundo e tendo lindos sonhos.
....................
ZARONDY, Zaymond. VIZZÕES. São Paulo: Grupo Beco dos Poetas & Escritorees Ltda., 2017.
ISBN 978-85-5610-013-9
Dili andava tranquilamente pelo centro da cidade. Já tinha ido a algumas livrarias da cidade atrás de livros para sua monografia de conclusão de curso, contudo não estava tendo êxito.
Desolada e desanimada, ela decide ir para casa. Afinal já passava das duas da tarde, saíra antes das 9 h. Com certeza sua mãe já teria ido várias vezes a porta ou caminhava pela casa apreensiva.
Na descida da rua onde estava ela tropeça e cai de repente e quando levanta a cabeça olha uma placa com a seguinte inscrição: SEBO SAUDADE, ENTRE E MATE A SUA. A placa inusitada chama a atenção dela no mesmo instante. Após levantar-se e rir do tombo ela num ímpeto decide entrar no sebo. Coisa que ainda não tinha pensado, talvez ali encontrasse o restante da bibliografia para seu trabalho acadêmico. Nos sebos ás vezes tem tanta coisa boa, barata e bonita, o famoso 3B, ela riu de si mesma. Dili vai para a estante da área de humanas e começa a vasculhar. Depois de alguns minutos encontra alguma coisa. No final da estante ela acaba dando de cara numa prateleira de CDS e vinis antigos. Um impulso faz com que ela resolva dar uma olhada. Decorridos alguns segundos um vinil antigo chama sua atenção pela expressividade do titulo: Venha me amar você ai e também pela beleza do cantor. Ele tinha os olhos brilhantes, expressivos e extremamente sedutores, numa maneira que Dili se sente quase invadida por aquele olhar. Sem pensar duas vezes, ela pega o vinil e mergulha naqueles olhos, passeia naquela tez branca e rosada, alisa aqueles cabelos louros ondulados e quase beija a boca vermelha e convidativa da foto da capa. Um estalo faz Dili voltar a si. Ela de novo ri de seu devaneio bobo. Dirige-se ao balcão e paga os objetos que deseja levar. Ela recebe o troco, vira-se com a sacola na mão e de imediato volta-se para a atendente que fica atrás do balcão.
- Moça, por favor, esse cantor aqui, existe outro vinil dele por aqui, ela diz mostrando a capa.
- Não, esse é o único. Ah, você tem como ouvir isso, afinal é vinil e já não existem mais aparelhos por ai?
- Não, de fato, agora que atentei para isso...
- É que tenho um amigo que transfere de vinil para CD, pega o cartão dele, se interessar, se realmente for ouvir isso, caso seja presente para alguém de sua família mais velho como pai ou avó.
- Ok, muito obrigado, ela agradece saindo meio aturdida com a influência que uma foto causara sobre ela, ao ponto de comprar um vinil que nem teria como ouvir.
Dili vai para casa pensativa dentro do ônibus. Quando chega ouve o sermão da mãe pela preocupação que causara. Já no quarto e cansada Dili adormece e sonha. Um sonho agitado, onde andava perdida numa floresta e ouvia alguém dizendo: ouça-me, eu estou aqui. Ela corria ao encontro da voz e nada. Exausta ela para e senta numa pedra que encontrara no caminho. De cabeça baixa ela tenta descansar. Então sente uma mão no ombro e ao virar-se, desperta toda suada. Seu olhar vai direto na direção do vinil, ela então vai até a bolsa pega o cartão e liga. Pega a bolsa e sai de casa, com o vinil na mão.
No dia seguinte, Dili sai da aula apressada, que nem fala com as colegas sobre o seminário de amanhã. Ela vai direto para casa de Alípio, o rapaz que fazia a gravação de vinil para CD, por sorte a casa dele ficava no mesmo bairro que a sua. Após receber o material, ela paga, agradece e sai apressada. Entra em casa nem fala com a mãe direito, corre pro quarto, liga o microsystem e coloca o cd. Ela deita e a primeira música era venha me amar você aí, nome que dava titulo ao LP, era assim que chamavam naquela época. A letra da música era bonita, era na verdade um poema de amor. Dili viaja na música perdida nos olhos do cantor. Ela de novo adormece e sonha. Nesse agora estava no jardim e deitada sobre as flores, ela ouvia de novo um apelo chamando-a de forma veemente, estou aqui, mas não te vejo, qual o motivo não entendo. Ela acorda num sobressalto e toda molhada de suor. Ela pega o notebook, liga e vai direto para o google. Escreve o nome Cazamar e clica em busca. Em segundos é elencado vários itens para sua pesquisa. Ela vai clicando, lendo, lendo, lendo e até relendo.
Cazamar era o nome artístico de Carlos Mário Sardela, um cantor e ator da década de 70. Ele gravara apenas 3 LPs, fizera dois filmes e algumas novelas. Ele tentava conciliar as duas carreiras, mas gostava mesmo era de cantar e tinha como hobbie escrever. A maioria das músicas dos seus discos era de sua própria autoria. Dili entra em sites que tem fotos dele, dos bastidores de shows, de gravações da novela, dele criança, da família, de textos descobertos após sua morte. Um dos sites era mantido pela irmã dele Sara Sardela. Ela clica em contatos e manda um email para Sara. Em seguida ela entra em sebos virtuais e vasculha durante horas até encontrar os outros dois vinis gravados por Cazamar. Ela encomenda, nem se preocupa com o valor, passa tudo no cartão da mãe. Dili parecia obcecada pelo cantor que quando morrera seus pais ainda nem se conheciam. Carlos Mário morrera num acidente de carro viajando de uma cidade para outra em turnê. Pensando nisso e lendo uma carta da irmã feita na época da morte ela chora copiosamente. Ela chora como se tivesse conhecido Carlos, como se fosse amiga, fã, parente e como se o fato tivesse acabado de ocorrer. Dili chora até adormecer e de novo sonha. Dessa vez está num barco a deriva em mar aberto. Fazia um sol escaldante e ela de novo ouve um apelo: sonhe comigo, eu preciso de você, eu preciso de sonhos, eu me alimento deles. Ela acorda assustada, pois reconhecera a voz, era a voz de Cazamar, o cantor morto há mais de 3 décadas. Estaria louca, estaria tendo alucinações, estaria ficando demente ou não, não pior, do que tudo isso. Ela bem sabia que estava apenas apaixonada por um morto. Com o rosto molhado de lágrimas ela corre pro banheiro, liga o chuveiro e entra de roupa e tudo. Ela fica horas lá sentada e só volta a si pela voz do irmão que diz que precisa tomar banho para sair.
Dili continua na internet lendo tudo que pode sobre Carlos, trocando emails com Sara, colhendo informações sobre gostos, intimidades e sonhos do seu novo ídolo, vendo fragmentos das novelas que ele participara no youtube e os clipes de seus sucessos que estouraram na época. O tempo passava e Dili mais se fascinava, se encantava, se eternizava, sonhava e se apaixonava por alguém que já era impossível amar de fato. Ao mesmo tempo com as revelações confirmava que era a alma gêmea de Carlos Mário. Transcorrido uma semana ela recebe os dois vinis, corre para casa de Alípio para transformá-los em CDs. Aos recebe-los ouve atentamente e até canta, pois imprimira as letras que falavam de vida, amor, pessoas e sentimentos. Em especial, ouve repetidas vezes as músicas: Sonhe comigo e Mar dos teus olhos, carros-chefes dos dois discos respectivamente e a qual davam nomes. Mar dos teus olhos a faz se lembrar do sonho. Dias depois ela recebe uma surpresa via correio: Sara, a irmã de Cazamar, reunira os poemas do irmão em um livro intitulado: Cazamar – Casa do Mar de Amor e lhe enviara um exemplar, juntamente com um convite da noite de autógrafos. O motivo marcava os 35 anos da morte do cantor. Dili fica louca para ir, ela precisava conhecer Sara. Sem pensar ela compre as passagens de avião no cartão da mãe escondida, pede dinheiro emprestado aos avós e vai. Através de um email ela avisa Sara que chegará a tarde um dia antes do dia do lançamento do livro.
Sara vai esperar Dili no aeroporto. O encontro de Sara e Dili é comovente, elas se abraçam, ela é viúva e mora sozinha, já que os filhos estão casados. Ela insiste para que Dili fique hospedada na sua casa. Dili aceita na hora, assim ficaria mais próxima de alguém que além de irmã, convivera muito com Carlos Mário, já que Sara fora empresária do irmão.
Sara prepara um jantar para recepcionar Dili e na mesa as duas conversam bastante. Sara então confessa em lágrimas que depois que começara a trocar emails com ela passara a sonhar com o irmão constantemente. Sara por sua vez conta que era para ter morrido com o irmão, contudo ele a salvou dizendo que ela precisava acompanhar a banda e os aparelhos, ele alegou que só confiava nela. Antes de sair de carro ele a beijou e disse que a amava muito, pareceu até uma despedida. Sara falava chorando, ela confessa ainda que tinha uma ligação forte com o irmão e que depois da sua morte sempre sonhava com ele. Mas após alguns anos os sonhos pararam, ela ficou angustiada. Nesse instante ela entendeu que tinha esquecido do irmão, foi quando reuniu tudo que pode dele, criou o site, criou um fã-clube em memória e teve a ideia do livro comemorativo da morte. Ela diz também que encontrou muitos textos do irmão em cadernos e agendas e que está pensando em um outro livro no próximo ano. Após o relato ela pede que Dili explique melhor como alguém tão nova pode gostar de um cantor já falecido e há tanto tempo.
Dili conta sua história detalhadamente para Sara que fica atônita e pede que Dili espere um pouco. Ela traz uma agenda velha e diz que o nome do sebo onde ela encontra o vinil do irmão lembrava uma letra de uma música dele.
“Quando você sentir saudades minhas...”
Quando você sentir saudades minhas...
Olhe pela janela
Veja o brilho do sol
Veja a beleza da lua
Sinta a brisa do vento
Nesse momento eu vou estar contigo
Atente para tudo que te faz sentir viva
Entre no seu interior, agite as folhas dos sonhos
Perca-se em tudo que é capaz de te fazer feliz
Alcance as estrelas e se vista com essa luz
Quando você sentir saudades minhas...
Olhe pro céu, visto que já terei partido
E nunca duvide que lá de cima estarei me alimentando do reflexo dos teus olhos
Olhando e velando por ti de uma forma incontestável
Quando sentir saudades minhas dispa-se do seu eu
Adentre em si mesma e verá minha presença nua e tão sua.
Dili não se contém e chora. Sara a abraça. Elas se reconfortam e ficam conversando até tarde. Pareciam que se conheciam há anos. Uma sensação de conforto toma conta das duas, ambas sentem-se bem e próximas da felicidade plena. Elas bebem vinho e ouvem muito Cazamar. Dili sente-se leve feito uma pluma e sorri muito. Olha fotos de família de Sara, ver Carlos aos 2 anos nu na cama, com a mãe, o pai, e a irmã. Juntas se recolhem muito tarde. Tontas pelo vinho elas adormecem logo. Dili sonha dessa vez não ouve a voz de Carlos Mário, apenas sente que é tomada por uma tranquilidade imensa e uma serenidade indescritível. Ela está num lugar lindo, repleto de uma natureza que exala beleza, uma água cristalina num córrego manso e uma cachoeira onde se banha. O sonho termina e Dili continua dormindo e esboçando um sorriso discretamente.
No dia seguinte, Sara leva Dili para conhecer a cidade, já que a noite de autógrafos seria às 19;00 h. Sara disse que estava nervosa, assinaria como organizadora, já que os textos não eram seus, mas ela sentia-se ansiosa e nervosa como se fosse.
Chega à noite tão aguardada por Dili e Sara. Elas chegam cedo na livraria que era de um amigo de Sara de longa data. Ele as recepciona, oferece água, café e pede que Sara supervisione as coisas para saber se está do seu agrado. Dili passeia pela livraria, folheia alguns livros, resolve comprar um ou dois, lembra-se da monografia. Uma angústia toma conta de si, ela relembra do poema na agenda e ela sente que jamais seria feliz se fosse obrigada a abdicar dos sonhos que a levavam para junto de Carlos.
Começam a chegar gente, Sara cumprimenta a todos. Então se senta na mesinha e logo se forma uma fila para os autógrafos. Dili reconhece alguns velhos ídolos seus de infância já velhos, entre cantores e atores. Então num ímpeto ela decide dar uma volta, passear um pouco pela praça que ficava em frente. Distraída ela não presta atenção que ainda tinha um último degrau e pisa em falso batendo com a cabeça no corrimão da escada. Uma poça de sangue se forma junto a sua cabeça no chão. Alguém que ia entrando grita pedindo ajuda. De dentro da livraria algumas pessoas correm em socorro, inclusive o amigo de Sara. Uma pessoa pega o celular e liga para ambulância.
Quase um ano se passara. Eunice e Gustavo, mãe e irmão de Dili estão no hospital na sala de espera. Eunice chorava e Gustavo a consolava abraçando-a e a reconfortando no peito. Nisso surge o médico que cuidava do estranho caso de Dili.
- Diga doutor, houve alguma melhora com a minha filha?
- Não dona Eunice, continua tudo na mesma. Já lhe disse que vir aqui quase todos os dias não resolverá nada, apenas lhe trará sofrimento. O quadro de Diliane continua o mesmo: ela está em coma devido a pancada na cabeça, os exames não mostram nada de tão ofensivo assim que pudesse causar essa inconsciência. Não foi detectada nenhuma lesão cerebral. O caso de sua filha é estranho, mas tem tantos casos estranhos na medicina, a senhora não imagina.
- Obrigado doutor, diz Gustavo.
- É como se sua filha estivesse em sonho profundo e não em coma, é como se ela estivesse dormindo. E pelo seu semblante é como se estivesse em sono profundo e tendo lindos sonhos.
....................
ZARONDY, Zaymond. VIZZÕES. São Paulo: Grupo Beco dos Poetas & Escritorees Ltda., 2017.
ISBN 978-85-5610-013-9