DE ALMA QUEIMADA

Oitenta anos de vida e de barraco na comunidade ao lado.

'Tempos de fogo, esse mundo arde mesmo em brasa!", sempre reclamava a quem encontrava, e a mim já me parecia de alma queimada.

Vivia ela com um companheiro mais jovem , dez anos talvez, com quem dividia a pouca comida, os trocados conseguidos no semáforo, e a hora da novela.

À noite engolia um anticonvulsivante, porque as convulsões venciam o álcool e não a deixavam dormir.

Certo dia, uma queimada invadiu o barraco, diz que foi o companheiro que esqueceu o cigarro aceso.

"Acho que foi de propósito, ". Confabulou? Não sei. Contou ter sido retirada pelos bombeiros às pressas, e depositada num albergue. Apanhou das companheiras, agora segue pelas ruas a lamentar a perda da dentadura, sua única e última riqueza.

Depois me suspirou:

"Sinto saudades dele...' confessou meio desnorteada.

Escondeu a cicatriz da queimadiura da perna, sob o algodão ralo do vestido, de padronagem de flores do campo.

"Já passou!", declarou entre sorrisos...

Mas a mim não me foi difícil enxergar sua alma queimada...para o "sempre" do pouco tempo que lhe resta.

Nota:

Da realidade surreal.