Pêlo negro, ou a mosca na cerâmica.
Pêlos cresciam no nariz arrebitado. Pêlos cresciam nas mamas, no queixo, e nas axilas. Achava normal, até gostava. Como era gozado alisar os pêlos que se amarrotavam no corpo, percebia-se tão incomum, peculiar. As outras meninas eram todas depiladas, lisinhas. Achava absurdo, repugnante.
Bom mesmo era ter pêlos. Não tinha vaidades, a não ser para com os dentes. A arcada dentária era uma perfeição, uma obra de arte, cerâmica da mais sublime brancura. Gostava de exibi-la a quem fosse, sem pudor ou timidez.
Era laborioso o cuidado com os dentes, porém satisfatório. Jamais poderiam acusá-la de mau hálito, não, jamais. Limpava os dentes com tal afinco, que nem seria preciso consulta ao dentista. Mas dentista era figura sagrada.
Tinha, inclusive, guardada na carteira, uma pequena foto 3x4 do Doutor Cruz, o dentista da família. Um senhor de bigodes salientes, e natureza fervorosa. Pregava a higiene bucal como Religião, sendo a senhorita dos pêlos, sua mais fiel devota.
E então se exibia tão gratuitamente que beirava à vulgaridade. Certa vez, ao olhar-se ao espelho, percebeu uma pequena mancha negra, e então loucura tornou-se companhia. Doutor Cruz foi necessário, porque era missão das graves. E ela não conseguia entender o por quê da mancha.
Fio dental, creme dental, enxaguante bucal, limpeza profunda. Flúor, e outros cuidados. Tudo feito, refeito, e nada. A mancha persistia, continuava. E conforme os dias passavam, a mancha negra se acentuava. Se agravando, tomando forma, espaço.
Até que se percebeu do que se tratava. Um minúsculo e quase imperceptível folículo de pêlo negro. Ela não conseguia acreditar em seus olhos.
O fio era grosso, muito escuro, viril. Arrancou, mas logo após outro já se mostrava visível. Ficou louca. O que acontecera, ela não conseguia imaginar coisa como aquela. Desesperada, começou tratamento no dentes, esperando resultados.
Oito semanas intensas, e a mancha de pêlo negro já a havia tomado por completo, até que resolveu arrancar o dente problemático. “Antes que o mal se alastre” pensou. “Isso, isso”
E Doutor Cruz extraiu-lhe o membro maléfico de sua dentição. Mas nada serviu aquilo, no outro dia, lá estava o mal nos outros dentes, e tomava-lhe toda a boca. Depois tomou-lhe todo o rosto, e corpo.
Até que a menina era só uma mancha negra que perambulava por aí. E os pêlos a sufocaram em seu emaranhado de fios.