A última badalada

A campainha tocou. Meio perdido, olhei o relógio: onze e quinze da noite. Ainda estava acordado, debatendo-me com um texto que se recusava a ser terminado, mas fiquei surpreso com o horário em que alguém se dispõe a me fazer uma visita. De qualquer forma, levantei-me do sofá e fui abrir a porta.

Do lado de fora estava ela - a Morte - toda vestida de preto, rosto pálido e sem demonstrar emoção alguma. Não sei bem por quê, mas considerei tal visita como a coisa mais normal do mundo. Sua campainha toca tarde da noite, e quem pode ser? A Morte, ora bolas!

Desconcertado, disse-lhe: "Você veio me buscar ou só está aqui para uma partida de xadrez?"

Ela não respondeu. Lançou-me um olhar frio e fez menção de entrar. Abri-lhe espaço. Deslizando suavemente pela minha sala, ela se sentou no sofá onde eu estivera antes do soar da campainha. Ainda sem saber como lidar com a situação, perguntei-lhe:

"Gostaria de beber alguma coisa?"

Ela concordou acenando com a cabeça. Até o momento, não dissera nenhuma palavra. Fui para a cozinha perguntando-me o que a Morte gostaria de beber. Por fim, preparei dois copos de gin com tônica e os levei para a sala. Ofereci um deles à Morte, e ela agradeceu com um sorriso. Sentei-me numa poltrona, de frente a ela.

"Então... Você continua jogando xadrez?", indaguei.

"Não", ela respondeu após sorver um gole da bebida. Sua voz era tão fria quanto o olhar. "Minha última partida foi aquela registrada no filme do Bergman, 'O Sétimo Selo'. Desisti de jogar com humanos."

"Envolvida em alguma atividade agora?"

"Só o de sempre. Levar pessoas."

"Então você veio aqui para me levar?" Tremi, diante da proximidade da Morte em pessoa, e perante a probabildade de ser envolto em seus braços.

"Ainda não chegou sua hora", disse ela enquanto fitava o relógio na parede. "Apenas permita-me o prazer de conversar um pouco. Tem ideia de quantas pessoas me recebem assim, com coragem de falar comigo?"

Supus que não houvessem muitas. Ainda, espantei-me comigo mesmo: lá estava eu, já onze e vinte e cinco da noite, recebendo tranquilamente a Morte na minha sala de estar e servindo um drinque para ela. Não, eu não devia estar bem. Talvez fosse um sonho, um delírio, sei lá. Já que a Morte veio no intuito de conversar, que eu conversasse com ela para que tudo acabasse bem! O único problema: não tinha sequer noção do que eu poderia falar para o espectro sentado à minha frente. Por fim, ela puxou conversa:

"Você continua escrevendo?"

"Sim, sim. Estava terminando uma crônica minutos antes de você chegar."

"Ora, espero não ter atrapalhado..." o tom em sua voz demonstrou um pouco de desconcerto. Apressei-me a responder.

"Oh, não, de forma alguma. Fiquei preso numa ideia, ou melhor, na falta de uma. Isso sempre acontece comigo. Começo a escrever e de repente... não consigo imaginar um final."

"Entendo", ela respondeu. "muita gente não está familiarizado com a ideia do fim. Eu, ao contrário, sou mais do que expert nisso."

"Posso apostar que sim", respondi com um calafrio na espinha.

"Gostaria de dar uma lida nesse seu texto. Posso?"

Levantei-me da poltrona, alcancei o caderno em cima da mesa de centro e lhe entreguei. Debruçando-se sobre ele, a Morte começou a ler com visível interesse, vez ou outra bebericando de seu copo. No silêncio que se fez durante aqueles minutos, a única coisa audível era o tique-taque do relógio que mostrava onze e meia da noite.

"Você não precisa terminar isso", respondeu ela, uns cinco minutos depois. "Deixe como está."

"Ora, mas do jeito que está não tem desfecho algum. Ninguém vai ficar sabendo o que aconteceu com o personagem, se ele conseguiu encontrar sua..."

"E quem precisa saber?" a Morte me interrompeu, aumentando seu tom de voz. "Já disse que os homens não estão acostumados com finais. Sempre querem ouvir um 'felizes para sempre', e quando não ouve, ficam frustrados. Acontece, meu caro, que nenhuma história termina no 'felizes para sempre', pois neste mundo de incoerências não se pode ser feliz eternamente."

"Mas assim..." comecei, mas ela logo interveio:

"Deixe como está. Não dê a ninguém um final pronto. Cada um vai ler o que foi escrito até aqui e imaginará o seu próprio desfecho. Pouco importa se o personagem se casa ou não, se ele encontra sua irmã perdida ou se resolve viajar para o outro lado do mundo e se tornar um heremita. Acredite em mim, ninguém se interessa pelo que você acha que deve acontecer. Cada um quer impor suas próprias conotações, cada um quer que tudo termine de seu jeito. Deixe-os na dúvida."

"Tudo bem, aceito a proposta." Nunca na minha miserável vida de escritor eu havia pensado dessa forma. E a Morte tinha razão. Sempre me diziam que eu não deveria ter terminado tal texto de tal forma, que eu deveria ter poupado fulano e beltrano das coisas que acontecem naquela outra história... Todos dando palpites, ninguém concordando com o que eu escrevera.

A Morte olhou mais uma vez para o caderno antes de devolvê-lo, e quando o fez, olhou para o relógio que marcava dez para a meia-noite. Por fim consegui pensar em algo para puxar conversa.

"Por que as pessoas têm medo de morrer?" perguntei.

"O medo de morrer nada mais é do que o medo do desconhecido. As pessoas me temem justamente porque marco a passagem para algo que vai além de tudo o que elas conhecem, mais além do que qualquer ciência é capaz de perscrutar."

"Quer dizer que se conhecêssemos o que há além da morte..."

"Não haveria o que temer." a Morte pousou seu copo vazio sobre a mesa de centro. O meu já havia se esvaziado há quase meia hora.

"E você, tem algum medo?", perguntei. Ela fez silêncio antes de responder.

"Quando se vence o medo da morte, não temos medo de mais nada. E não há como eu temer a mim mesmo. Mesmo assim, meu único medo é não cumprir corretamente o que devo fazer, na hora em que devo fazer. Como você bem deve saber, não sou uma autoridade suprema. Cumpro ordens como todo mundo."

Faltava menos de um minuto para a meia noite quando ela se levantou do sofá e deu dois passos em direção à saida. Levantei-me e disse:

"Deixe-me que eu te acompanhe até a porta"

"Acompanhar-me sim, mas não até a porta. Você vai me acompanhar além dela."

"Como assim?" Meus pensamentos se embaralhavam. "Você não disse que não iria me levar?"

"Disse que não havia chegado a sua hora". O sino de uma igreja perto de casa começou a soar as doze baditas da meia noite. "Agora ela chegou".

Fiquei pasmo, olhando para ela, mas a Morte não moveu sequer um músculo. O sino soava pela sétima ou oitava vez.

"Se vai me levar, por que está parada? O que está esperando?"

"A última badalada..."

Marcel Gustavo Alvarenga

31/07/2010

Marcel Gustavo Alvarenga
Enviado por Marcel Gustavo Alvarenga em 02/08/2010
Código do texto: T2414717
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