Curta proposição

Como dizer quanto tempo existe entre olhar para um lado e o outro da rua e ter a certeza que essa olhadela pode custar ou não a sua vida? Como dizer, e ter a certeza ao afirmar, que não foi distração ou ingenuidade, que aquele carro dobrou rápido demais a esquina, ou será que era uma reta e a distração de um beijo não permitiu que ocorresse da forma devida o caminhar e o atravessar a rua? Propor-se a resolver tal problema, tal enigma é um mistério insolúvel para qualquer mente. Mas pagar por um problema sem solução com quase um ano de coma profundo é que não soa justo para nenhuma criatura. Mesmo a mais singela ou horrível pessoa pagar com uma doença grave nunca é justificável, não é racional nem divinamente correto pagar com tão grande tributo.

Sentir que aquele ente querido não irá mais acordar, que até ontem você desejava estar morto no mais profundo dos infernos por causa de uma discussão banal em relação a um clube qualquer de futebol. Tolas as desavenças não são agora tão importantes. A possibilidade de nunca mais ter uma discussão fraca como aquela, ou como qualquer outra anterior a ela, deixa o chão mais distante dos pés e o céu mais, muito mais, longe do coração. Deus não é justo em certos momentos. Ele é indireto e devasso naquilo que quer dizer, ele mente com um sorriso tão lindo e uma voz tão muda que acreditar sempre é palpável, nunca verídico.

Os tubos enfiados pela boca e pelo nariz, alimentando com sonda aquele que era alimentado com amor e ódio. Tanta calma para um portador de um temperamento tão vivo, tão ativo, tão discutível. A saudade é real ou apenas a lágrima que corre pela face ruborizada de uma vergonha em pensar que todo esse sentimento de perca na verdade é uma grande e infatigável dúvida. Desligar tudo sem que ninguém perceba e livrar-se de vez desse imprestável ou continuar aqui gastando um dinheiro que poderia muito bem ser aplicado com o amante de antes do acidente. Maldito e bendito beijo que nos separou pensa a cabeça torta, turvada por pensamentos benignos, voluptuosos, desejosos de liberdade.

Livre arbítrio, é isso que significa, fazer as escolhas que melhor lhe cabem e arcar com todas as despesas e sacrifícios morais que acarretam. Foi isso que ocorreu quando as enfermeiras correram a acordar a esposa de um homem que tinha acabado de deixá-la viúva. Nunca lágrimas falsas pareceram tão verdadeiras.