Eis que vi a morte

Sábado, 25 de Janeiro. Voltava tranqüilo para casa. Já era tarde da noite, o relógio acusava 23:59 hs. Fazia o caminho de costume. Passava por aquela rua todos os dias, então o medo que deveria sentir, foi-se embora nos primeiros dias em que por lá passei. A rua era estranha. Rememorava as celebres cenas de filme de terror: escura, fria, árvores secas.

O silêncio era um inimigo, lutava com ele e comigo mesmo. Essa luta era interior, mas a imaginação me limitava ao medo. A noite veio sem lua, com pouca estrela, sem vento. Convidava jovens tolos, que por ali passavam, a se assustar.

Tranqüilidade era um sentimento que não me habitava. A princípio não estava com tanto medo. Pouco tempo antes falava de viagens, literatura, enfim. A verdade é que me libertei do mundo, pensava no futuro, no que gloriosamente me tornaria. Eis que ouvi ruído. Era amedrontador, sombrio, vago, silente ainda que ensurdecedor. Meu corpo? Já nem sei mais se o tinha. Fiquei paralisado. Meu coração pulsava como o de um amante que decide se declarar à sua amada.

_ E gora? Eu perguntava ainda silente. Parecia que eu iria morrer e o pior, por alguém que nem sequer havia sido apresentado.

Aos poucos fui recobrando os sentidos, inclusive os movimentos, mas não pensem que o medo havia passado. Engano o seu se pensa assim! A situação ainda era aterrorizante devido ao fato de eu não saber quem é que estava ao meu encalço.

Não tive a heróica coragem de virar a cabeça e tentar descobrir a origem do som, mas o som queria me despertar, não havia desistido de mim.

Ainda embriagado num medo desgraçado dei um passo, dois passos... Tencionando ir embora, mas estava preso àquele lugar. A impressão que dava era que ele estava me atraindo cada vez mais, me convidava a lhe desvendar mistérios, aquele em especial.

O som foi se fazendo próximo. Cada vez mais ecoava como gritos desesperados em meus ouvidos. Gritos de dor, de lamento, de punição. Um gemido aterrorizante. Vulgarmente julguei que fosse uma alma penada que vinha ao meu encontro. Nunca havia visto uma alma penada e a hipótese de ver uma naquela noite não era nada agradável. Num movimento rápido de cabeça, olhei ao céu, talvez na esperança de que por ali passasse um anjo, quem sabe ele me salvaria daquele momento que me perdia em mim mesmo. Mas o anjo não apareceu e a suspeita de uma alma penada foi se firmando em minha jovem cabeça. Atrás de mim forma uma imagem, pensei ser a minha sombra. Mas como seria se nem sequer tinha lua no céu.

Passos lentos, pesados. O cheiro de pos-vida encobria o ar. O silêncio, o frio, Ah o frio!

Aos poucos uma densa neblina começava a se formar a minha volta. Já estava amedrontado enquanto podia ver alguma coisa, mesmo que embaçado, fiquei com mais medo ainda quando não pude ver nada.

Eu já não via um palmo diante do meu nariz, mas meus ouvidos estavam escutando, o que nem mais fazia parte desse mundo, não ao menos do material. Senti um frio na espinha. Não era um frio comum, daqueles que arrepia e faz-se a necessidade de um agasalho. Era um frio que não cessaria mesmo que eu tivesse enterrado em uma fogueira. Transpunha os limites físicos, ia além das sensações corpóreas naturais de cada ser humano, excedia ao que supunha ser realidade. Minha alma estava inteira gelada, tomada em arrepio. Já nem sabia o verdadeiro significado da palavra medo.

Pairou ao ar uma voz que me interrogava. O medo não foi tão grande, pois a minha cota de medo já havia sido atingida naquela mesma noite, um tanto atípica. A neblina foi ficando mais densa e, juntando com a escuridão da noite me fez mais cego do que antes.

Na calada da densa neblina, senti um penso no ombro direito. Como instinto eu me virei e a vi. Não esbocei reação. A sensação de vê-la foi, no mínimo, estranha. Me selou com um beijo, o instinto vital sumiu, assim como o frio que me arrepiava a alma.

A morte como idealização! Lá estava ela. Não era um monstro como pensei, não era uma alma penada, nem tão pouco uma anjo como pensei que fosse. Vi a morte meus caros, eu vi a morte! Linda, em poesia viva, mágica.

Aos poucos a neblina foi sumindo e eis que enfim pude vê-la por completo. Era alta, branca. Ah seus cabelos - longos, pretos, lisos – esvoaçam ao vento que não ventava. Seu olhar era expressivo, grande, chamativo, mesquinho, egoísta, ainda que sublime. Dilatava em serenidade. Me apaixonei. Ela me ofereceu a mão e sem questionar, aceitei. Impulsivo? Talvez, mas como recusar um gesto tão humilde de um ser tão grandioso? Estava apaixonado, estava imortal naquele momento de profundo amor.

Voamos céu adentro. Já não tinha mais o medo que acelerava meu mortal coração, já não tinha mais esse coração palpitante, que um dia me causou tantas dores. Partimos rumo ao infinito. Minhas lembranças já não são tão importantes. Guardo somente o pôr-do-sol, que magicamente abriu o dia em que minha ausência se firmou e que minha alma estava entregue aos ventos.

Dsoli