A Menina da Rua de Cima
Eu olhava sua janela toda vez que passava por sua rua, ela parecia estar lá o dia todo, olhando o movimento que nunca pudera tocar no centro de São Paulo, enquanto eu corria e vivia a cidade de uma forma robótica, saía de casa às 7h da manhã, pegava o mesmo ônibus todos os dias, comentava sobre o jornal do dia anterior com o cobrador, cruzava a Av. Paulista e finalmente descia perto da Vila Madalena onde o mesmo segurança me pedia o mesmo crachá que continha o mesmo nome de todos os dias, na volta eu acabava pegando o mesmo ônibus lotado onde ouvia as pessoas reclamarem de suas vidas e contarem seus planos caso ganhassem na loteria, cruzava de novo a Av. Paulista agora já encantada com o charme da escuridão solar e descia um ponto antes para vê-la à janela olhando talvez para mim, talvez para os carros, talvez para outra coisa qualquer.
Numa semana aleatória resolvi que sorriria para ela, era segunda-feira de frio, chuvisco e pessoas desesperadas para chegar em casa, naquela semana o prêmio acumulado da loteria era de 24 milhões, o que deixou o cobrador realmente esperançoso e comprou uma dúzia e meia de bilhetes, a empregada doméstica que sempre sentava atrás do motorista disse que era tudo armação para controlar a população e em alguns aspectos até concordo com ela. Desci dois pontos antes, comprei um guarda-chuva de um homem que gritava “aproveitem, hoje é meu ultimo dia de trabalho, pois amanhã estarei milionário”, ele parecia bem acreditado de sua sorte, usava uma capa de chuvas e tinha uma feição cansada, porém sempre enfeitada de um sorriso calculadamente simpático.
Percorri meu caminho com minha nova aquisição que era meu guarda-chuva vermelho com alguns detalhes em preto e minha mochila já encharcada com as pequenas gotas que caiam do céu, chegando perto de sua casa preparei-me para sorrir e talvez acenar para a menina que eu vinha observando esse tempo todo, lá estava ela, parada, olhando, imóvel... Acenei e ela não emitiu reações, tentei de novo e ela não respondeu de jeito nenhum, senti-me invisível ao olhar dos outros, mudei meu rumo e não passei por lá durante algum tempo, talvez ela sentisse minha falta. 1 mês depois resolvi rever minha insensível musa, ela havia sumido, sem deixar rastros ou sem me dar o prazer de receber alguma atenção sua, na porta havia uma placa de imobiliária colocando o imóvel em aluguel, então resolvi ligar, quem sabe encontraria e saberia o que aconteceu com aquela menina dos olhos tristes que pareciam vidrados com o movimento da cidade na janela à esquerda no segundo andar.
- Imobiliária Rovez, boa noite
- Boa noite, eu vi esse número na porta de um imóvel, gostaria de uma informação sobre o aluguel...
Comecei minha busca assim, marquei um sábado com a corretora Sarah, ela abriu a porta da tal casa, me mostrou quartos amplos e bem pintados, janelas grandes e arejadas, realmente uma raridade em São Paulo, principalmente no centro.
- O que aconteceu com o outro morador?
- Ele saiu do país com sua senhora, foram para Alemanha ampliar seus negócios já que sua filha morreu há alguns meses.
- Morreu? Coitada...
- Pois é, disseram que sua mãe mandou fazer uma boneca em tamanho real da menina para que, de alguma forma, ela sentisse a presença da filha
Será mesmo que estamos falando da mesma família? Boneca em tamanho real? Filha que morreu há alguns meses? Não poderia ser verdade, eu a vi sorrir numa quarta-feira quando um cachorro passou pulando nas poças d’água enquanto sua dona gritava “Não Belle, você acabou de tomar banho! Menina má, menina má!”, aliás se as pessoas entendessem que o cachorro não consegue entender as palavras e sim a entonação parariam de falar tais asneiras para eles, mas aquela menina se movia, não pode ser que apaixonei-me por uma boneca de uma mulher morta, seria o fundo do poço de toda a minha vida amorosa.
Fui trabalhar na segunda-feira seguinte com isso na cabeça e resolvi aprofundar minha relação com o cobrador do ônibus comentando sobre o ocorrido, talvez ele soubesse da história já que morava e trabalhava por ali
- Ah sim, a menina que morreu da rua de cima, uma pena... Parece que ela tinha depressão e nunca saía de casa, acho até que ela morreu de solidão, sabia. A mãe dela ficou doente também, mandou fazer uma boneca da filha e colocar na janela, a mulher até falava com a boneca, de manhã quando passávamos por lá sempre ouvíamos a mulher gritar para o boneca descer e tomar café, acho que eles saíram do país para a mulher se tratar, coitada...
Definitivamente não era uma boneca, me recuso a acreditar que acenei para uma boneca, ela tinha alma, tinha coração, tinha expressão e eu não consigo esquecer aquele sorriso. Liguei para Sarah e disse que queria aquela casa independente de custos ou problemas, queria aquela casa e era questão de honra tê-la.
Duas semanas depois estava me mudando para a tal casa, coloquei minhas coisas em seus devidos lugares e resolvi entrar no quarto onde a menina/boneca costumava ficar, lá tinha um guarda-roupas muito grande e quando o abri lá estava ela, toda em porcelana com algumas rachaduras em seu braços esquerdo, olhos pintados tão perfeitamente que pareciam ter o brilho da vida, sua boca sutilmente puxada para o lado direito formando um sorriso tímido e sua roupa parecia uma camisola rosa claro com algumas pedras ao redor do busto, não agüentei e lhe dei um beijo, ela era fria, salgada, empoeirada, mas eu precisava beijá-la de qualquer forma, retirei sua presença do guarda-roupas e a coloquei em minha frente, resolvi colocá-la na sala de estar e sentei-me de frente à ela, conversei e tentei alguma reação, não é possível que ela não tenha calor, não tenha alma, talvez ela não fosse uma boneca e sim uma mulher em estado de choque, seria completamente plausível uma mulher em estado de choque ter se enfiado no guarda-roupas enquanto seus pais mudavam, seria completamente plausível uma mulher com rachaduras na pele.
Continuei com minha rotina, pegava o mesmo ônibus, ouvia a mesma empregada doméstica, conversava com o mesmo cobrador, atravessava a mesma Av. Paulista, mostrava o mesmo crachá com o mesmo nome para o mesmo segurança, porém agora eu tinha alguém para me esperar dentro de casa, salgada, fria, pouco empoeirada, mas tinha alguém.