SOBRE A LÍNGUA
...não, não, nada de interessante mesmo. Isso. O que dizer sobre Thomaz? Um cara desinteressante não apenas às mulheres, mas aos homens também. Ou seja, não servia para o amor nem para o trabalho; não servia para o sexo nem para uma rodada de chopp.
Thomaz, um rapaz de vinte e nove anos, filho de pais paupérrimos, morador de um bairro humilde – para não dizer carente –, segundo os que o conheciam, “não fedia nem cheirava”. Para estes, Thomaz era aquele cara que “esteve aqui ainda agora e saiu”. Saía sempre porque sua permanência nos lugares de nada mudaria. Seus gestos, suas palavras, suas atitudes não moviam seus destinos, muito menos os dos outros.
Certa noite, completamente exausto do trabalho duro na construção civil, Thomaz chega em casa e se depara com seu pai a dormir sobre o sofá. O velho dormia de boca aberta e roncava tão alto quanto a TV, ligada no volume máximo – seu pai era quase surdo. Thomaz desliga o aparelho e, sem saber o que realmente estava fazendo – talvez por estar tão cansado – começa a observar por dentro da bocarra aberta do pai.
Por ter o velho acabado de jantar, seus dentes amarelados apresentavam as sobras de um feijão com arroz cuja aparência era a de quase azedar. O rapaz continuou a olhar. A fim de observar ainda mais aquela cena, Thomaz chegou o mais próximo possível daquele buraco sujo.
Foi quando, num piscar de olhos, Thomaz se viu dentro da boca do pai, mais especificamente sobre a língua. Sim. Minúsculo como uma mosca, Thomaz agora era pura saliva até os calcanhares. Ainda sem entender o que ocorrera, tentava se manter de pé, mas a quantidade de saliva o fazia escorregar e escorregar. Thomaz se levantava novamente, porém, mais uma vez caía; e levava um baita susto ao avistar um buraco negro a lhe sugar – era a garganta de seu pai.
Não demorou muito até que Thomaz deixasse de lado os pensamentos que buscavam uma resposta para aquilo tudo. O rapaz tratou logo de “se virar”, como pôde, a fim de se manter longe da garganta. A claridade que havia logo à sua frente, marcava a silhueta da ponta daquela língua. Thomaz pôde ainda avistar duas pessoas, micros, como ele, sentadas sobre aquele cume.
- Corre, cara! – disse uma daquelas pessoas a gargalhar.
Thomaz, por mais que tentasse desesperadamente chegar à ponta daquela língua, não conseguia com facilidade. Notava que havia mais umas dez pessoas na mesma situação que a dele. Algumas delas se faziam valer pela força e empurravam outras em direção à garganta. Thomaz testemunhou um homem gordo que, por conta de seu peso, não conseguia se mover em direção ao cume, mas que se divertia em arremessar mulheres e crianças em direção à garganta.
Conforme os minutos iam se passando, a quantidade de pessoas sobre aquela língua aumentava. Thomaz se desesperava ainda mais. Mesmo assim, tentava manter o foco nas duas pessoas acomodadas lá no alto, na ponta da língua.
Com muito esforço, Thomaz conseguiu chegar à metade do caminho, onde encontrou Maria, uma mulher atraente e bastante comunicativa.
- É novo por aqui? – dizia Maria.
- Depende. É a língua de meu pai. Digamos que a conheço bem, mas não desse ponto de vista.
- Gostei do seu humor. Já sabe como viver por aqui?
- Não muito bem, eu acho.
- É o seguinte: tente se manter ágil, mas não entre numa de correr demais, pois você escorrega e aí...
Thomaz mal tinha tempo de visualizar melhor Maria, que era linda. Apesar de sua calça jeans estar coberta de saliva e restos de alimentos já apodrecidos, aquela mulher era capaz de conquistar Thomaz num sopro. Os cabelos, mesmo melados de saliva e suor, deixavam claro os cuidados de Maria tempos atrás. Alva, alta, de traços finos e boca enorme, Maria era o ser sujo mais belo sobre a língua.
- Por que estamos aqui? – perguntava Thomaz à Maria.
- Ora, e eu lá sei? Só penso em descansar um pouco. Sentar sobre a ponta da língua.
- É o que todos querem por aqui?
- Sim. Cada um com a sua maneira própria de se locomover, mas com o mesmo objetivo.
- Não sei se vou aguentar. Estou muito cansado.
- Mas é o seu primeiro dia, rapaz! Anime-se! – dizia Maria tentando o ajudar a se manter de pé.
Maria e Thomaz conversaram bastante. As frases, sempre ofegantes, estimulavam um ao outro a se manterem naquela corrida. Thomaz perguntou à Maria se o medo se fazia presente em seu coração. Maria respondia que, estando sobre a língua, o medo era preciso, pois era o que a mantinha em reação.
- Thomaz – dizia Maria –, entenda que, estando sobre a língua, tudo o que tem a fazer é se focar no cume sem escorregar, manter o seu medo num grau que o ajude.
- E no meio disso tudo – dizia ofegante Thomaz, nós dois podemos nos envolver?
- Até poderíamos, se estivéssemos no cume, claro.
- E por que não no meio da língua?
- Porque podemos nos apaixonar. E a paixão nos levaria direto para a garganta. A paixão só é possível sob a tranquilidade do cume, entende? Aqui, no meio da língua, não há espaço para apaixonados. Somente os focados terão o direito de se apaixonar, desde que cheguem ao cume.