UM PESADELO EM PLENA COPA

Conheci o Ângelo na sarjeta. Não na “vala do agrião” como se diz na gíria do futebol, quando o cara está na posição de impedimento. Na vala comum dos que trocam a vida de glória, ainda que efêmera e que dá para fazer um pé de meia, por uma vida de degradação pura e simples, se entregando ora ao hedonismo, ora ao ilusório fugir da realidade e no final acabando sempre destruído pela dependência orgânica. Era um craque da bola e um tímido ao mais extremo que se puder imaginar de um tímido. Ah, antes que eu me e esqueça, a sarjeta em questão era um boteco copo sujo onde eu tomava o meu conhaque barato todos os dias. Seu pai havia sido um craque também e o queria como seguidor, uma sombra em sua carreira. Acontece que o pai havia tomado o mesmo caminho anteriormente. A única coisa que deixara para o filho, no entanto, e que poderia ser útil em algum momento na vida, era um bilhete de recomendação. Bilhete que acabou sendo um atestado de desrecomendação já que ele havia perdido toda a sua credibilidade por causa da bebida. Ângelo teria ido à copa de 70, se não fosse por aquele episódio da troca de técnicos de João Saldanha por Zagalo. Seu pai era um velho conhecido do João Saldanha e havia conseguido uma indicação para ele entrar rapidamente num time de ponta para ser convocado e ir jogar pelo Brasil naquela copa

Sabem da história da troca de técnicos? Contam que o Médici, o general que estava comandando o país naquela época em que os generais eram os presidentes (o Brasil teve cinco deles se alternando no período entre 1964 e 1982), mandou o João Saldanha escalar o atacante Dario e ele não aceitou a ingerência, no que foi trocado por Zagalo, mais mansinho. A cartolagem naquela época era menos sutil e o uso do futebol com fins políticos era mais evidente. O Brasil ganhou assim mesmo. Dario entrava depois que o time já estava ganhando.

Mas voltemos ao Ângelo, ele perdeu a vaga no time por isso e por sua timidez. Nas últimas tentativas por parte de seu pai, já sem nenhum crédito junto aos cartolas, o menino (17 anos) sumiu no mapa. Por isso que veio parar aqui nesta cidade e se transformou, primeiro num motorista de caminhão. Engraçado que trabalhamos na mesma firma e eu não o conheci lá, vim a conhecê-lo justo no boteco. Depois transformou-se num alcoólatra e depois num louco. Estava afastado pela previdência; como dirigir caminhão desse jeito? Ângelo era o tipo tímido rejeitado em estado de sofrimento que não aceita falar de seu problema porque é tímido e resolve a timidez na cachaça, quando então, fala sem parar. Só que agora já não falava mais coisa com coisa, soltava toda a sua afetividade reprimida numa mania de ficar pegando na gente enquanto dizia coisas cuspindo pra todo lado. Eu vivia lhe dizendo: Ângelo, a gente não precisa falar com as mãos... Ele pronunciava também a sua fúria quando se sentia rejeitado, mas não agredia fisicamente, só com palavrões, muitos palavrões. Acho que isso era uma espécie de terapia para ele, pois depois saia com um risinho meio cínico no canto da boca como se quisesse dizer que estava satisfeito. Ele chegou a jogar peladas com o pessoal do trabalho e disseram que o cara era mesmo um craque, inventava coisas com a bola que ninguém aqui por estas bandas conhecia.

Ângelo atualmente povoa meus sonhos pelos menos uma vez por semana. Não sei se é por causa da copa do mundo que está acontecendo lá na África, só sei que ele sempre aparece para tomar alguma coisa e eu já nem bebo mais. Eu preciso fazer alguma coisa, acho que estou ficando perturbado com esse negócio de um sujeito que não teve nenhuma participação significativa na minha vida ficar aparecendo para mim feito um devaneio de minhas noites. A única certeza que me resta é que a bebida alterou definitivamente a minha vida e a dele.

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 02/07/2010
Código do texto: T2353219
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