O Muro dos Fuzilados

* Da série Contos Avulsos

Negro, invariavelmente sujo como todo e qualquer morador de rua, Zé Milico transitava pelas ruas do centro da cidade, recebendo sempre restos de comida nos bares e restaurantes, além é claro de uma esmola para garantir a “pinga” , aquecimento químico para as noites frias e sonífero eficiente para o difícil sono dos mendigos.

A única lembrança que o vinculava ao apelido de Zé “milico” era um capacete arranhado - tom verde oliva desbotado - que carregava sempre à cabeça e lhe servia também de porta-objetos embaixo do improvisado travesseiro . Para muitos não passava de um louco, para outros era simplesmente um dos tantos bêbados, tão indesejados quanto indispensáveis às praças e ruas das cidades.

Ele, contudo, havia sido soldado do Exército e – mentira ou verdade – contava que participou da primeira leva que formou o efetivo da FEB – Força Expedicionária Brasileira – e que havia lutado no front italiano. Como nunca mostrou nenhuma prova disso e diante do notório conhecimento de que os “pracinhas” eram amparados pelo Estado , além de contarem com uma bem estruturada e mobilizada Associação de ex-combatentes, nunca se deu muito crédito a essa sua história ...

Certo dia um de seus relatos chamou muito a atenção de todos os que tomavam um café no centro, quando Zé Milico – muito contente e satisfeito com generosas esmolas doadas pelo grupo – começou a contar uma história referente a um Quartel de São Gabriel onde , segundo seu relato , havia servido antes de ir para a Guerra. Disse que nessa unidade militar, por volta da metade do século XIX – lá pelos idos de mil oitocentos e cinqüenta e uns – dois soldados haviam sido fuzilados.

Contou que a crendice popular os havia consagrado como os “Irmãozinhos Fuzilados”, mas que isso não era totalmente verdadeiro, pois de fato haviam sido dois os soldados executados, mas eles não eram irmãos. Na realidade – após uma pausa ensaiada - contou a todos os presentes que sabia detalhes porque conheceu um ancião que fora Cabo naqueles idos tempos, o qual lhe narrou que naquela época o Quartel era comandado por um Oficial de péssima índole e humor de cão, daqueles que se deliciava humilhando seus semelhantes.

Após um mês inteiro de péssima alimentação servida no “rancho” do quartel havia entre os soldados uma revolta muito grande, a tal ponto que alguns recusavam comer e preferiam comprar rapaduras e salames nos armazéns próximos à guarnição. Dizem que muitos “cutucaram” o soldado tido como mais valentão da tropa, o qual desafiou o poder do comandante, que imediatamente reagiu determinando a um tenente que lhe aplicasse umas “chicotadas”, no que o soldado revidou a golpes de faca, cortando o oficial. Foi imediatamente condenado à morte.

Os outros todos, como sói ocorrer aos covardes, recuaram e se mantiveram reverentes aos comandantes, todavia , o colega de beliche e melhor amigo saltou em defesa de seu camarada, inclusive exigindo clemência , no que obviamente foi repreendido e imediatamente preso. Dizem que desde sua cela ele ouviu os tiros do pelotão de fuzilamento, seguidos do silêncio comum à morte .

Dias depois, após ter chamado de covardes e bandidos aos oficiais, recebeu também a sua sentença de morte e foi executado no mesmo muro. O curioso – narrava Zé Milico – é que depois do fuzilamento eles foram apelidados de “irmãozinhos” e no muro onde foram executados apareceram velas acesas e oferendas religiosas seguidas de alguns acontecimentos bem nefastos na vida dos oficiais que ordenaram os fuzilamentos.

Logo – poucas semanas após o fuzilamento - esses comandantes foram transferidos e o muro transformou-se num verdadeiro santuário , a tal ponto que passado mais de um século do acontecimento, até hoje as pessoas se dirigem até lá para pedir milagres ou pagar promessas . A coisa é tão grande dizia Zé Milico – “que tiveram de abrir uma entrada especial para civis no muro do quartel” . E arrematou sentenciando: - “Com o tempo a ‘Terra dos Marechais’ vai se transformar na terra da Romaria dos Fuzilados”

Onde antes foi um muro destinado a condenados e carrascos, hoje existe um santuário, o “muro dos irmãozinhos fuzilados” , contava Zé Milico.

Depois de ouvir atentamente ao interessante relato do mendigo , um dos participantes da confraria do café levantou-se para se despedir dos demais e do próprio Zé Milico, mas querendo fazer uma ironia saideira disparou – “Não está muito fantasiosa essa história Zé Milico”??

A resposta, tão intrigante quanto o próprio relato do miserável ex-soldado , saiu da boca com uma naturalidade que a todos espantou, porque por certo, Zé Milico não poderia haver lido Shakespeare , mas ele também virando as costas para tomar o norte da rua, balbuciou : - “ Não meu amigo , acredite há muito mais mistério entre o céu e a terra, do que supõe a nossa vã filosofia” ....