Penumbra
Penumbra
Ela continuava a dedilhar o violão na segunda semana seguinte sem sono profundo. A confu-são ainda era a que mais tomava seus pensamentos. Sonhos recorrentes e a insistente luta do anoitecer. O sangue, os abruptos socos vindos de todas as partes e muitos, muitos lampejos de rostos deformados comendo vísceras de peixes crus e uma “lama oleosa”, assim como descrevia. Cenas insanas. Tudo se confundia cada vez mais. O tipo de sonho com um perfume ou fedor que dura pelo amanhecer até se materializar em palavras, contos anexos sem muito sentido a serem manifestados à pessoa mais próxima, antes que os esqueça definitivamente. A música era a saída. O simples exercício do ouvir que acalma. Alice pensava assim. A música, tenro encanto, sentimentos insinuados nas notas, encenados pelos tão confusos humanos. Há ainda muito que se entender pela música. Não o meu ser, excluído dos sentidos, inimaginável, de uma única dimensão, infelizmente. Toca a campainha.
“Oi Alice! Estamos no barco. Estamos à beirada esperando vocês. Vamos ver a lua!” – fala a voz estridente de Carolina. Impulsiva e irritante. Saía sempre depois que as pessoas investissem enjôo pela sua presença. Porque, aprendido com os discretos, a lei do convívio é sempre sair antes que as pessoas se entediem do sujeito, como um artista ao palco. Que escolhe sair antes do público se cansar seja das músicas ou das instalações de um show superlotado, antes das primeiras brigas ou até mesmo antes do fim das palmas. Notado que no caso de Fúlvio, que cria ser um ótimo cantor, tinha que sair antes das perturbantes vaias dos espectadores. Malicioso comentário visto que seres como eu não têm uma boa audição, talvez para perceber mais claramente os desenhos, as formas físicas, assim como os desprovidos de visão aperfeiçoam do tato e de outros sentidos naturalmente adaptando às necessidades. Ele estaria no barco. Sim, sempre tem alguém para tocar nessas festividades de “gente grande” como dizem os mais jovens que estes jovens, mesmo que os adultos tenham a sua mesma estatura. Bebida, cigarro, roda, flerte, comida nem sempre, mas sempre alguém para tocar. Então era a vez de Fúlvio, com todo o charme que beira o ridículo, toda a equivocada impressão sobre si mesmo, com seus olhos por pouco vesgos e a fala própria da dislexia. Bom, mas como dizem os sensatos, a diversidade, diferenças singulares que fazem dos seres únicos. Alice bem que tentava pensar isso sobre Carolina, mas era clara a antipatia, sentimento que passou a fazer parte das minhas afirmações conseguinte. E então é sempre o tempo de pegar alguma roupa e sairmos, deixando nos lençóis os pensamentos inquietantes do universo paralelo dos sonhos e no violão as esperanças para a próxima noite.
Não sabia exatamente o que iria fazer lá, mas poderia prever. Uma grande e larga veia de água, seis pessoas em um barco, velha canoa, carranca à proa, invejáveis cores berrantes na madeira fincada com pesados pregos, casadas com o berrante sol sertanejo, longe das luzes da cidade, vicissitudes culturais vagando pelas margens do grande rio; três margens que agora compreendo bem, daqui de baixo, parte no casco, parte no banco, perto do silêncio, lugar bom de morar, bom de morrer. A distância que fazia ficar perto uns dos outros. Os assuntos às vezes ruminantes e curtos salvos pelas gargalhadas de Sabrina e o seu senso de humor perfeito, sarcástico e muitas vezes negro mesmo, mas não pouco interessante. Não era só o humor. “Era um ser perfeito nos modos, nos pensamentos, no corpo, com um único pecado.” Falava Fulvio sem nunca revelar o pecado destilando no momento o grande charme do discurso pseudo cristão. E todos falavam a mesma coisa, como uma propaganda que todo mundo gosta e em alguma oportunidade acaba comentando. E mesmo sem saber o defeito todos repetiam. “Uma mulher bonita e inteligente, mas com certeza, um defeito há por aí...” o consolo talvez aos corações amantes da figura mais graciosa da noite. Braços trançados aos braços do dono do violão que toca, em verdade, o único sabedor do segredo da Eva Sabrina. Deleites humanos, puramente.
Costumava sair com alguns deles para olhar as estrelas do barco, numa atividade da qual parecia para mim um encanto universal e que terminava após algumas horas de grande monotonia humana. Noite sem lua, confirmando o total desinteresse da antipática Carolina pelo céu. À noite entre uma e outra margem. Olhar estrelas longe das luzes artificiais da cidade é o que poderia ser para mim um sentimento parecido com prazer. E pensar que a muitos seres não será permitida essa luminosa visão, chegando ao plano final da vida sem esta fantasia. Grandes centros urbanos. Morte das luzes das estrelas. Morrem sem conhecer o céu. O céu e tudo o que ele é nos poemas e nas músicas e no que dizem os cientistas e igrejas só conhece mesmo, só sabe mesmo quem já o viu sem fumaça, sem nuvens, largo, extenso, imenso, e negro como se vê em alto mar, como se vê aqui. E tudo parece mesmo céu. O horizonte e o céu parecem uma única coisa, e vendo os dois se sente parte de tudo ou parte de nada. Eu, pequena parte de nada e parte de todo esse enegrecimento. Somente as sombras se parecem com a noite, o céu e o mar. A mesma escuridão e mistério. Na verdade somos o que chamam de silhueta, vulto, verdadeira marginalidade da existência, mas, eternos companheiros humanos. Um ser superior, talvez. Olhando o céu não poderia aprender algo com ele. O que se chama “inspiração”. Olhando o céu só vejo o significado àquilo que antes de mim não significava nada. Egoísmo. Um pouco de razão. Muito de beleza. A vasta beleza da filosofia em contraste com a presença da humana Vilma Bollar.
Vilma Bollar, desprovida de beleza. Jovem disforme. Longe do encanto do escuro. O oposto da fantasia estelar da noite calma. A riba de barranco caído, a lustrada testa medonha dos feitiços ribeirinhos, o último olhar da madrasta má dos sonhos infantis, desengaçada fétida, a carne afogada que desce à Bahia, despercebida aos pescadores. Não, não havia outro ser que provocasse em mim um despejamento tão grande de desdém. A partir dela entendido então como é difícil assumir-se como se é e gostar de si, contudo. Negativismo? Teria que conhecer mais dos sentimentos humanos para entender de outra forma. Bom não se ter crença, então posso odiar. Odiar Vilma Bollar.
O maior descontentamento em odiar Vilma é não ter como separar-me dela, algo que me dá náuseas, motivos de intensas reflexões existenciais. Como seria bom se os meus semelhantes falas-sem, refletissem e expusessem as reflexões em códigos como letras, palavras, recheadas de fone-mas e hiatos, dígrafos, metáforas como nós, regras simbólicas de toda uma complexa cultura, devi-damente soletradas por órgãos especiais que bem poderia ser tão estranho e vívido com uma língua, como as mãos que diz em silêncio. E então quem sabe ter sentimentos, essas gotas e tempestades do dia a dia que guiam os gestos e que compartilho com o escuro da vida.
Uma pena que ela tenha que andar junto de mim, dá enjôo e aumenta o meu ódio pensar que será assim para sempre, ou pelo menos ate à sua morte. Vilma tem uma cor que não gosto, motins desagradáveis e não parte dos seus esforços algo que torne as nossas atividades mais harmoniosas, mesmo sabendo que temos que andar juntas. Grande desprazer não ser percebida pelo objeto e por isso não influenciar diretamente em suas ações. Na verdade ela não sabe que andamos juntas na minha mal aventurada sorte. Não sabe que apesar da minha negra substância, a luz é como um corte profundo, um afiado estilete rápido e perfeito, em meu perfil, em minhas pontas, nos finos fios, dor necessária para a minha forma; o fogo provoca um ardor infernal em minha substância a ponto de distorcer-me completamente, os degraus, pequenas armadilhas lógicas, e a penumbra eterno limbo. Depender de alguém, de Vilma, é pra mim o pior carma que um ser poderia trazer para toda a sua vida, ou todo o seu percurso terreno. Todos os meus movimentos, todos eles totalmente limitados. Sim, o maior castigo, depender de alguém, predestinar a minha existência à de outrem. E esta é a sina. Por isso o escuro da noite. Lutar contra ser parte do todo escuro e não ser parte de nada me faz bem. Ser tudo, menos ser humano. Isso faz bem. Unir a todo o resto que sou eu. Todo o resto negro do mundo.
Há quem seja o oposto de Vilma. Alice. Linda Alice. Afagada por todos no barco, amante dos cheiros adocicados e quentes das fibras aquáticas, serena como as praias, croas, areias que cintilam à noite, rítmica como o remar e remar e remar até à outra margem e à outra margem e à outra margem no vai e vem dos viajantes das águas, no incansável percurso dos construtores da terceira margem, linda como a mareta que chega ao outro lado acompanhada dos dorsos grandes dos nadadores profundos, velhos moradores dos rios, fresca como a brisa e encantadora como os vaga lumes a piscar em meu peito. Desejo ardente. Desejo de todas as noites, em todas as luzes, com todos os gestos feitos, todas as danças, todas as músicas. É ela quem vejo em cada estrela iluminada. Nem penso em quem está por lá, e até deixo passar despercebido alguns gestos de Vilma, a quem devo obedecer naturalmente e incontestadamente. Sorte que ninguém percebe as sombras ou então notaria o quanto a minha paixão causa estranheza, desfigura o óbvio, permite que seja curioso o evidente. Uma sombra desobediente. Sofria com Alice, eu obedecia instintamente aos seus gestos. Indisciplinada e solitária sombra. Eu conseguia até ler seus pensamentos. Conseguia ver os seus sentimentos. Percebia seus suspiros ao anoitecer. A noite é quando as sombras escutam. E eu a ouvia. Ouvia seus gemidos de prazer, seus tapas de ódio. Ouvia até cada fio de cabelo que caía. Passava pelo seu corpo, o cheirava, tocava seu corpo todos os dias e era nele que queria estar. Na verdade não nele, mas saindo dele, nele também. Seus gestos são leves e tímidos. Seus passos são rasos, firmes, certos, previsíveis. Nada de insanidade. Vilma Borlla não a amava. Ela não a amava como eu, vaga sombra em um plano estranho. Nem se preocupava com os passos de Alice. Queria o prazer e o asseio. Insensata! Mas somente por causa de Vilma e tudo aquilo sujo que Alice viu nela é que eu podia senti-la tão intensamente. Vilma me permitia estar no corpo de Alice todas as noites. A sua demência caridosa aos meus anseios. Mordidas veementes, suspiros de sons agudos, bem próprios do calor encenado. E quando a odiada e amava o meu amor, era quando eu amava a odiada. Fardo pesado para um ser à margem do mundo. Seria bom sentir a borboleta saltitante do poema, as labaredas da pele das músicas, reunir leis sonoras com meus semelhantes e então ser enfim um ser humano e não uma sombra.