Encontro na madrugada
 

Estacionou o carro defronte sua casa com a certeza de que aquela seria uma sexta feira diferente. Vagarosamente entrou em casa e quando beijou sua esposa, sentiu apenas o gosto da rotina estática, e novamente pensou que a noite haveria de ser diferente, haveria de ser recheada por uma mudança radical. Já sabia todas as falas e as discussões que se sucederiam, desde a escolha do sabor da pizza (que sempre acabava no mesmo pedido) como também da disputa entre os filhos, sobre quem usaria o seu carro naquela sexta de baladas sempre imperdíveis. Subiu a escada ao som da voz da mulher indagando o sabor que comeriam naquela sexta feira e simplesmente ignorou sua indagação e ao abrir a porta de seu quarto ouviu o início das falas entre os filhos sobre quem iria onde. Fechou a porta, jogou o celular e os cigarros sobre a cama, retirou o relógio de pulso com cuidado – seu grande e fiel aliado – e sentou-se na cama macia. Pensava absorto na noite que se iniciava quando foi banhado por uma torrente quente, forte e farta, que inundou vigorosamente sua cabeça, desceu pelo seu corpo abaixo e instantaneamente teve uma vontade enorme de sair correndo. Ouviu novamente os chamados da esposa, dos filhos e instintivamente correu, abriu a janela, pulou a sacada, o muro, alcançou a calçada, surpreendendo-se consigo mesmo pela agilidade que sequer imaginara possuir. Só queria fugir. Só queria correr. Do meio da rua ouvia os gritos altos e nervosos da mulher chamando seu nome, e quando um vizinho abriu a janela, atraído pelos gritos de sua esposa, disparou ladeira afora. Corria ao lado dos muros do cemitério, que tantas vezes observava no seu caminho de ida e volta de casa, passou pelas praças, alcançou avenidas, não sabia para onde, nem sabia o por quê, mas precisava correr e fugir... Enquanto corria lembrava-se de sua vida, de sua infância, como num filme compassado com sua corrida, revia os momentos bons e ruins, e corria ainda mais... Sentia-se triste, confuso e corria... Sentia-se perdido e corria ainda mais... Correu, perdeu a noção do tempo, não sabia onde estava... Pensava e buscava... Num determinado instante parou e sentiu que era preciso voltar. Estava confuso e atordoado. A mesma força misteriosa que impulsionou sua fuga, agora o arrastava de volta. Não queria, mas sentia que precisava voltar e se encontrar. Enquanto corria de volta, pensava nesta estranha resistência física que não imaginava possuir e alegrou-se. Por um instante parou e perguntou as horas para o moço parado no ponto de ônibus, que não respondeu e sequer moveu seu rosto para olhá-lo. Voltou a correr, pensou que devia estar com uma péssima aparência, pois quando indagou novamente que horas eram para dois rapazes que vinham em sentido contrário ao seu, também foi completamente ignorado, mas não ficou muito irritado, pois já estava quase chegando e ainda trazia em si, como causa maior, a angústia de encontrar a si mesmo. Correndo ainda, deduziu que já era quase manhã, a madrugada estava morrendo, pois os primeiros clarões no céu anunciavam o raiar do sol... Estava quase chegando... Estava voltando sem encontrar o que saíra para buscar. Ao se aproximar do cemitério que antecedia o quarteirão de sua casa, vislumbrou muitos vultos conhecidos e momentaneamente sentiu-se culpado. Sabia instintivamente que algo acontecera e justamente ele, sempre atento, zeloso e prestativo, não esteve ali para ajudar... Começou a perceber por que tinha corrido... Alguém havia morrido e ele havia fugido... No saguão examinou com o olhar todas as salas mortuárias e numa delas viu seus filhos abraçados e tristes ao lado de um ataúde, procurou pela esposa e nada encontrou... Sentiu um tremor profundo, mas armou-se de coragem e entrou na sala. E eis que viu a si mesmo deitado e imóvel dentro do ataúde, percebeu a palidez de seu corpo ladeado por flores coloridas, sentiu a delicadeza do fino véu a cobrir seu rosto, percebeu a presença da esposa chorosa sentada ao lado de outras flores, e num lapso instantâneo de tempo respirou profundamente... Finalmente encontrou a si mesmo e entendeu o que buscava... Estava em paz...

zuleide zhu valente
Enviado por zuleide zhu valente em 09/06/2010
Reeditado em 09/06/2010
Código do texto: T2310552
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