Uma inesquecível parada de ônibus

Eu viajara para São Paulo de ônibus, a serviço, saindo de minha cidade ao anoitecer, chegando ao destino ao amanhecer do dia seguinte. Distante perto 1.000 quilômetros, a viagem era bastante cansativa, durava a noite inteira. No dia seguinte bem cedo, já na capital paulista, as atividades foram intensas, pois tinha compromissos em três fornecedores em extremos diferentes da cidade. Assim, a correria, o estresse tomou conta de mim e quando era por volta de 20:00 horas eu já estava pronto para retornar à minha cidade, com a missão cumprida. Chegando à estação Tietê, comprei passagem para o próximo horário disponível, que era às 23:00 horas. Ou seja, três horas depois. Fiquei zanzando pela estação, comprei revistas, jantei em um restaurante de higiene duvidosa das imediações e fiquei por ali matando o tempo, até a hora do embarque.

No horário marcado, lá estava eu, sentado em minha confortável poltrona, agora mais relaxado, voltando pra casa com a consciência tranqüila da missão cumprida. A viagem é longa, as paradas são demoradas, não sei se para cumprir horário, ou o que. O certo é algumas são de algo em torno de vinte minutos a meia hora ou mais.

Numa dessas, por volta de 03:00 horas da madrugada, o ônibus parou estacionado de frente a um restaurante ou bar, não sei ao certo, ao lado de uns dois ou três outros ônibus, de itinerários diferentes, mas que também faziam parada ali. Feita a parada, o motorista desligou o motor. Os outros também estavam com seus motores desligados, proporcionando um grande silêncio. Eu estava sentado bem atrás, perto do motor.

Eu que estava dormindo durante a viagem, acordei com a movimentação da parada, mas o sono continuava rondando de perto. Mesmo assim eu desci, deixando sobre minha poltrona, a minha câmera fotográfica que sempre foi minha fiel companheira e um walkman que às vezes eu utilizava pra ouvir umas músicas instrumentais, também minhas companheiras de viagens. Na cadeira minha vizinha não havia passageiro, o que me proporcionava certas regalias, podia escarrapachar um pouco mais durante a viagem.

Fui à lanchonete, tomei um daqueles sucos de caixinha e comi um lanche que ficava naquelas estufas para mantê-los esquentados. Sempre atento nos movimentos do motorista e no ônibus, não desgrudava o olho de um ou de outro, como se fossem meus únicos elos de ligações entre o planeta Marte com a Terra.

Quem já pegou estradas longas de ônibus, em lugares estranhos sabem o que estou dizendo. A dependência física, emocional e psicológica daqueles personagens é incrível! A gente não desgruda o olho do sujeito nem quando ele vai ao sanitário.

Mas o tempo foi passando, eu ali parecendo um zumbi, andando de um lado para o outro, sempre sem perder o ônibus de vista e atento aos movimentos de nosso herói motorista.

Acredito que se passaram entre 10 e 15 minutos e ele estava em uma roda de heróis, todos condutores dos outros ônibus ali parados, conversando animadamente.

Bem: resolvi ir ao banheiro, tirar água do joelho, a tranqüilidade dos motoristas me deixou mais à vontade, pois aquelas aliviadas nos sanitários do ônibus em movimento são terríveis. Só em caso de emergência absoluta mesmo. E pensar que tem gente que o usa ainda na estação rodoviária.

E pasmem: enquanto eu estava no bendito banheiro, o ônibus zarpou para o planeta terra, me deixando sozinho, desolado, feito cachorrinho sem dono, naquela parada sabe lá em que parte do mundo. Meus pertences, a câmera de estimação, o walkman... tudo foi embora e eu ali, sem lenço e sem documento. Eu fiquei naquela plataforma, andando de um lado para outro, sem saber o que fazer. Meu primeiro pensamento foi o de pegar outro ônibus do mesmo itinerário, mas sabe-se lá quando iria passar o próximo.

Os outros ônibus foram saindo um a um, como que combinados, deixando o bar/restaurante/lanchonete/estação agora vazio e silencioso, apenas um casal de jovens com grandes mochilas nas costas estavam por perto, desceram do mesmo ônibus que eu, e ficaram ali batendo papo, talvez esperando uma carona para seus destinos, sei lá. Portavam também algumas bagagens de mão e logo desapareceram para seus destinos. Eu permanecia em Marte, sozinho e desolado! A sonolência, que tomava conta de mim, foi embora junto com a minha nave espacial que me conduziria de volta ao planeta Terra. Eu estava só! Abandonado! Desolado! Apavorado!

Passara-se algo como uma hora, e eis que como num passe de mágica surge no meio da noite o meu herói motorista. Não sei como, mas ele percebeu a minha falta e voltou para buscar-me. E imagine um homem de bronca. Aumente a dose. Ele estava puto da vida comigo. Disse era sua última viagem antes de sair de férias, que eu atrasaria sua viagem, tinha compromissos importantes naquele dia, pois era o dia do seu casamento.

Poxa, eu não tive culpa, apenas fui ao banheiro, argumentava. Mas ele estava entre apressado, irritado, estressado, mal humorado, e a poucas palavras eu certamente leva uns tapas na orelha. Melhor embarcar e ficar na minha.

Mas, como miséria pouca é bobagem, (uma amiga minha sempre diz que quando está azarado, o urubu de baixo caga no de cima), quando me aproximei de minhas poltronas, percebi que a câmera fotográfica e o walkman haviam desaparecidos. E claro, dei com a língua nos dentes. Queria meus pertences, não abria mão. E a confusão foi formada. Era eu chateado, motorista nervoso, passageiros de bronca. “Se ele não tivesse ficado para traz nada disso teria acontecido”, dizia um. Outro: “Se ele não tivesse saído dessa porcaria de poltrona”. Outros solícitos começaram a olhar debaixo das poltronas e nada. E claro, nessa altura do campeonato, não tinha nenhum passageiro dormindo. E ouvi muitas vezes o nosso piloto dizer que se atrasaria para seu casamento, motivo da maior bronca dele.

Deu pra notar que ele verdadeiramente queria se casar.

Eu continuava irredutível, queria meus pertences. E então veio a dúvida: será que o casal das mochilas, que descera não pegou-os? De qualquer forma, se fosse o caso, nada poderia ser feito, eles já sumiram a tempos. E o balconista da lanchonete disse que viu sim o tal casal, mas não os conhecia. Não eram moradores do lugar.

E o motorista relutava em sair, disse que chamaria a policia para fazer uma revista geral, a coisa foi ganhando dimensões insuportáveis. Mas eu queria meus trecos de volta, disso eu tinha certeza.

E essa pendenga foi se alastrando indefinidamente.

Até que em certo momento, eu ouvi um grande barulho ao meu lado. E acordei assustado. Era o motor do ônibus estacionado ao lado do nosso, sendo ligado, iriam seguir viagem. Então totalmente desperto, vi que toda aquela tragédia era apenas sonho meu. Com a para e o silêncio, peguei em sono profundo, nem cheguei a descer do ônibus, quando ele parou de frente àquele bar, ao lado dos outros ônibus.

E logo o que eu estava também foi ligado, o motorista manobrou e pegamos estada noite adentro. E a viagem foi concluída sem nenhum imprevisto.

Faria Costa
Enviado por Faria Costa em 01/06/2010
Reeditado em 13/09/2013
Código do texto: T2292634
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