SEM ELAS
Acordo cedo novamente. Sento-me na cama que um dia dividi com ela. Olho de relance para o lugar em que ela dormia ao meu lado. As janelas com as pestanas fechadas impediam a entrada do frio sol de outono no quarto de lembranças.
Olho para o cômodo que nunca mais será o mesmo. Sempre faltará algo que o complete. Algo que me complete.
Levanto-me; meus cabelos desgrenhados, minha barba a crescer, minhas profundas olheiras, meu corpo magro e meu desespero indicam a minha fragilidade e desesperança. Saio de minha alcova, vou a outro quarto. Está intocável. Olho para os desenhos pintados em papéis fixos na parede rosa e passo as pontas dos meus dedos no retrato dos dois anjos que um dia trouxeram alegria à minha alma inerte.
Saio do recinto, desço as escadas e vou à sala principal. Sujeira seria um sinônimo correto para aquela sala. Ligo o som. Coloco um CD. Aumento o volume ao máximo.
“Requiem for a dream – Lux Aeterna” começa a dar seus primeiros acordes e vou em direção à porta dupla de vidro. Abro-a e estou no quintal gramado. Descalço ando pelo gramado pontilhado por folhas secas. Escuto-as fazer barulho, parecem vidro ao quebra-se. O vento frio faz o balanço de madeira da árvore mexer-se. A pequena bicicleta continua no mesmo lugar, aproximo-me e toco a campainha já enferrujada. O som ecoa e meus olhos ardem. As lágrimas escorrem e acompanham os sulcos de meu rosto. Sim, a saudade bate à porta e eu a deixo entrar.
O vento frio leva minha máscara de fingimento para longe. Arrepia-me os cabelos.
Volto para dentro. A música está nos compassos e acordes mais intensos. Subo as escadas. Pego uma peça de roupa de cada uma das três mulheres que escreveram seus nomes no meu livro da vida.
Vou a meu quarto. A música ainda continua intensa. Sento-me na cama. Aproximo as roupas em meu rosto. Sinto o cheiro de cada uma. A dor lacerante domina o meu corpo. Grito. Grito de dor. Grito de saudades. Grito de arrependimento. Grito de paixão. Grito de pena.
— Eu as matei! — grito a plenos pulmões.
Assassinei minhas madonas. Fui absolvido pela justiça terrena, mas a divina declarou-me culpado. Minha punição é a lembrança.
Olho para o espelho. Onde estou? Para onde vou? Luzes irão guiar-me para casa? Desisto da vã filosofia da vida.
Abro a gaveta do criado-mudo. Ali está. A mesma arma demoníaca que utilizei para cortar o fio da vida das minhas mulheres.
Fico-me olhando no espelho enquanto minha mão guia a arma cega até a minha têmpora. Imagem real. Imagem feita. Homem morto.
A música lá embaixo espira seus últimos acordes.
Aperto o gatilho. Estampido. Silêncio...
Não vi o filme de minha vida. Não vi nada. Não senti nada.
Meu sangue mancha o tapete felpudo branco. Minha vida condenada sai pelo ferimento.
Não vejo luz. Não vejo Deus e Seus anjos. Esse é o Inferno?
Como escrevi este texto?
Por que matei minhas três madonas?
Por quê?
Por que estou aqui?
Não mereço estar aqui.
Adeus...