Dor/mente
De repente com um grito sufocado ela enterrou a mão dentro do próprio peito e puxou todas as veias que continham sentimentos, arrancou com violência em um único puxão as artérias de emoções. Com as mãos envoltas em uma enxurrada de sentimentalismos, mãos trêmulas, via a dor no seu peito se alterando entre aumentar e diminuir. Uma expansão de vazio, e um preenchimento da frieza, nulidade.
Olhou pra si, através do que sobrou do espelho quebrado na parede do banheiro escuro. Não conseguia se enxergar totalmente. Via partes de si, conforme se posicionava e se movia na frente dos fragmentos, via seus próprios fragmentos. Uma sensação gélida lhe passou pela coluna, seus olhos negros e profundos, observavam o mundo a sua volta travestido em uma imagem mista de memórias em sépia, e realidade em preto e branco. Seu film noir particular.
O piso quadriculado lhe dava a impressão de estar em um tabuleiro de xadrez, de ser a última peça pronta para dar um xeque mate, (ou de repente seria ela travestida em rei a tombar vencida?)
Continuava a se observar pelos pedaços do espelho, e se viu refletida também nos pequenos cacos que jaziam no chão, a seus pés. Sua respiração ritmada, era o único som ecoando nas paredes úmidas. Pela janela entrava uma luz fraca, vermelha, emitida pelo néon do hotel barato que ficava do outro lado da rua.
Apoiou as duas mãos na beira da pia encardida, a cabeça baixa, com os olhos semi cerrados via seu peito aberto, agora vazio, ela estava vazia. A sensação era estranha, como se libertar de algo, prendendo outras coisas. Havia mesmo arrancado de si as manifestações mais singulares emotivas? Ou só estava enterrando esses sentimentos dentro de si ainda mais, numa tentativa ridícula de esconder que também sentia? Algo como cavar um buraco na própria pele e ir enfiando algo pra dentro, com as pontas dos dedos, a sangue frio, sem anestesia, até enterrar aquilo bem fundo, pensando que assim não encontraria.
Levantou o rosto mais uma vez para se olhar no espelho. Passou as mãos pelos cabelos que lhe caíam sobre a testa. Ergueu o corpo. Olhou ao redor, se virou e saiu caminhando. Seus pés descalços pisavam os cacos do chão, mas ela não se importava. Em seu torpor mental nem sentia, ou fingia que não sentia.
Caminhou até a beira do quarto escuro, silencioso, e se sentou na beira da cama por cima da velha colcha de retalhos coloridos, agora já desbotados. Dali podia enxergar o chão do banheiro, com marcas escuras de seu próprio sangue derramado, de partes de si que arrancou com suas próprias mãos. Mãos... olhou para elas e notou que tremiam mais uma vez. Cerrou os punhos e os dentes. Jogou o corpo para trás e se deitou, olhando para o velho ventilador que pendia do teto de madeira descascado. Fechou os olhos, adormeceu, talvez acordasse mais viva na manhã seguinte. Talvez tudo aquilo não passasse de um sonho ruim. Talvez ela estivesse presa em seu próprio sonho, ou pesadelo. Adormeceu. E seu peito agora vazio, cicatrizando, quem sabe evitaria que sentimentos se arrastassem para lá e se instalassem novamente dentro dela, como hospedeiros, parasitas internos que a consumiriam dia após dia.