A persistência da memória
No momento em que foi colocada a última peça da máquina do tempo, um clarão fugaz iluminou a sala por apenas um segundo como uma câmera fotográfica acionada subitamente. Os cientistas assustaram-se quando a porta da engenhoca abriu-se e do interior esfumaçado surgiu um homem metido em roupas espaciais.
O estranho desceu para o solo da sala, retirou o capacete e sondou o ambiente com olhar de espanto. Os cientistas a sua volta observavam-no com um misto de espanto, perplexidade e maravilha.
- Meu Deus... ela realmente funciona. – O homem e os cientistas falaram ao mesmo tempo.
O estranho aproximou-o do cientista mais velho, estendeu a mão e perguntou com um sorriso de relações sociais:
- Me chamo Cronélios. Venho do ano 2110. Você é o criador dessa máquina?
- Sim. – O velho cientista respondeu abobalhado.
- Sua máquina esteve fechada num depósito por quase 100 anos. Para comemorar o centenário de sua criação, decidimos utilizá-la. Mesmo com uma tecnologia tão obsoleta, vocês foram capazes de construir algo que até mesmo de onde venho é considerado algo inviável.
- Por 100 anos ninguém usará a máquina?
- Não. – Cronélios respondeu sentando-se para retirar aquela roupa desconfortável. – Ela é muito perigosa e provavelmente estou desafiando muitas leis da física por estar num tempo o qual nem nasci.
Todos pensaram naquilo e perceberam a real dimensão do invento.
- Se não nasci ainda, o que estou fazendo aqui? – Cronélios continuou fitando a máquina com assombro. – São por essas questões que tínhamos medo de usar a máquina. Uma simples viagem no tempo pode trazer a tona centenas de paradoxos.
- Sabemos disso. – Um dos cientistas respondeu. – Mas existem teorias que podem contornar a sua existência num tempo onde você ainda não existe. Você duplicou a si mesmo, sobrepôs sua existência e agora está dividido em dois mundos paralelos diferentes.
- Algo fantasioso demais para ser exato. Do tempo aonde venho, a física quântica perdeu essa áurea de fantasia e começou a ser encarada como uma ciência mais... como posso dizer? “pé-no-chão”. Mas essa máquina comprovou que é possível voltar nesse passado aqui.
- Passado? Aqui? – O cientista chefe responde um tanto ofendido. – Aqui é o presente, Sr. Cronélios. – Você é que, de fato, é o intruso aqui, você é do futuro.
- Não, não. Vocês são do passado. Eu venho do presente real. Imagine, que disparate.
- Espere. Entramos em outro paradoxo bizarro. Será que somos o passado em relação a você, ou você é o futuro em relação a nós?
Cronélios parece refletir seriamente aquilo em silêncio. Responde retirando um cigarro de nome e formato esquisito para o tradicional que os cientistas conheciam.
- Escute... isso é bem relativo. Venho de um tempo que vocês já morreram há mais de meio século... como podem estar vivos aqui se no meu tempo já estão mortos? É algo para nossos cristãos refletirem.
- Entramos numa sinuca de bico, companheiros. – O cientista chefe comenta um tanto confuso. – Ricardo está certo, o universo tem seus mecanismos para driblar essa falha no tempo. Provavelmente você está dividido em dois mundos agora: o mundo 2110 e o mundo 2010. Imagine que para cada decisão que tomamos, o universo se sobrepõe e constrói uma realidade alternativa para simular aquela outra decisão refutada.
- É bizarro pensar nisso sabendo que nossa vida é feita de decisões. A teoria das cordas também sofreu algumas alterações em 2050 e está perdendo cada vez mais consistência até se tornar um conto de fadas.
O cientista chefe volta-se para sua criação e reflete antes de falar.
- Se destruíssemos a máquina nesse momento?
- Não faça isso! – Cronélios bradou. – Se destruir a tecnologia que me trouxe até aqui, como eu posso ter voltado no tempo?
- Encare como uma experiência cientifica. – O chefe da equipe responde com um sorriso sarcástico. – Mas, não. Não destruirei algo que demorei toda minha para construir... Certa vez um cientista dos anos 60 pensou na possibilidade de construir algo para voltar no tempo, pois tinha a obsessão de salvar o pai de um acidente aéreo. Se pensarmos com a lógica, o próprio motivo da volta no tempo anula a volta no tempo. Seu motivo era voltar e salvar o pai, se o pai foi salvo não haverá motivo para uma máquina ser inventada, se não há motivo, a máquina não foi construída, se não foi construída, como ele pode ter voltado para salvar o pai?
- Isso me lembra o paradoxo do avô. – Um jovem cientista reflete com olhar vago e confuso pela conversa paradoxal.
- Sim. – Cronélios responde sorrindo. – Vou sair a procura de meu bisavô e assassiná-lo, cortando assim a possibilidade do meu nascimento.
- Mas existe a teoria do passado imutável. – Um dos cientistas entra na conversa pela primeira vez. – Qualquer mudança que você fizer aqui, quando voltar, fará parte da sua memória e da memória de todos envolvidos.
- Mas isso é um absurdo. De uma hora para outra, uma memória nova será adicionada na consciência das pessoas como se sempre tivesse existido? – O cientista chefe questiona.
- Na verdade voltamos ao universo paralelo...
A sala ficou num silêncio inquietante, cortado apenas pelo zumbido grave das máquinas e computadores.
- Estamos vivendo uma alternativa, então? – Cronélios pergunta mais para si do que para todos.
- Provavelmente... a sua vinda desdobrou o universo em duas partes. A sua de 2110 e esta de 2010. Imagine agora que você vive em dois lugares ao mesmo tempo, sem um ter consciência do outro.
- Como o tal Gato de Schrödinger... – Um dos cientistas, o mais jovem por sinal, comenta. – O gato dentro da caixa pode ter sido morto pelo veneno ou sobrevivido. Ou seja, do ponto de vista quântico, ele está vivo e morto ao mesmo tempo. O que determina é a interferência humana ao abrir a caixa e delimita um estado. O universo se duplica e cria duas realidades. A realidade em que o gato sobreviveu, e a que morreu pelo veneno.
- Mas isso entra numa contradição que ninguém pensa. – Cronélios responde. – Se só após a interferência humana o universo se divide em duas realidades distintas, significa que o universo era todo sobreposto antes da existência do primeiro homem?
Ficaram em silêncio por mais alguns minutos, cada um ruminando suas opiniões e equações para aqueles problemas confusos e sem explicação.
- Você pretende voltar?
- Sim. – Responde Cronélios vagamente. – Nasci em 2065. Imagine se eu ficar por aqui até o dia do meu nascimento? Não haverá mais um duplo de mim, cada um de em sua realidade alternativa, mas um duplo de mim na mesma realidade. E ai? Como fica sua teoria de mundos paralelos agora?
- Provavelmente, se permanecer por aqui, você não venha a nascer em 2065, mas pertença a essa realidade desde sempre.
- Que disparate! – Cronélios branda rindo-se. – Como posso pertencer desde sempre a um tempo anterior ao meu nascimento? Se minha permanência aqui anula meu nascimento em 2065, fazendo-me pertencer a essa realidade desde sempre, quando nasci? Qual é a minha história? Quem são meus pais?
- O universo sempre dá um jeitinho de contornar essas questões. – O chefe da equipe responde inquieto pelas indagações. – Imagine que a história do universo foi toda contada no momento em que ele foi criado. Tudo que está para acontecer, já aconteceu. É como um rolo de filme imenso com toda a história e todo o tempo contido. Passado. Presente. Futuro. Só foram nomenclaturas humanas para algo que se julgava intransponível, mas a verdade é que a própria verdade é relativa e flexível demais para um conceito. Você pode bagunçar toda essa história, esse rolo de filme hipotético com essa empreitada de volta ao tempo. Quer saber o que pode acontecer se você permanecer aqui até o ano de 2065 e presenciar o seu próprio nascimento? Não se sabe. Talvez você conheça sua mãe e se apaixone e venha a ser pai de si próprio. Ou o destino, por falta de termo melhor, tratará de eliminar essa sua cópia do futuro para que o tempo transcorra normalmente. São infinitas possibilidades, meu caro.
- Decidi que voltarei para casa. – Cronélios decide confuso. – Pronto! Outra cópia minha foi criada, a que fica e a que vai.
Todos riem da piada.
- Mas é sério. Acho que vou voltar para 2110... engraçado usar o verbo “voltar” para a direção contrária. Deveria ser o verbo “ir”, mas como eu já “vim” significa que “voltarei” e... bom, não importa. Estou confuso demais para pensar e mais um paradoxo e eu me mato.
- Matar-se cria outro paradoxo. Morte anterior a própria morte. Isso ta ficando cada vez pior. – Um dos cientistas comenta rindo-se.
Cronélios despede-se e adentra a máquina. Ao voltar ao seu tempo, nada parece ter mudado. Imagina que quando o tempo daqueles homens de 2010 transcorrerem até aquele dia, tudo se repetirá... e repetirá... e repetirá... e repetirá...