O cinismo escondido
Recordando: Passaram os anos. Há muito que tinha saído da pequenina povoação perdida entre as serranias, os montes agrestes. Vivia. Não! Existia apenas, sem futuro. Contrato feito, fugindo por entre veredas e caminhos que só os passadores profissionais conheciam, e se faziam pagar por bom dinheiro. Pagou, ou antes pagaram os pais.
O Eldorado era sempre a pátria de Victor Hugo. Ali encontrou outros fugidos sem destino.
O primeiro teto era normalmente o "Bidon Ville". O tristemente célebre "bidon ville": a primeira casa dos emigrantes da primeira geração.
Mais tarde passados anos regressavam para férias,a ambição primeira era casar,constituir família. Emigrante era estatuto. Numa dessas efémeras viagens casou. A prole aumentou, na mesma medida que a vida ia melhorando. A segunda pátria não era madrasta. Os filhos frequentavam a escola de bairro, pouco a pouco os pais foram esquecendo a língua paterna, os filhos nem a aprendiam sequer.
Dos filhos um não quis estudar; formou-se muito mais tarde, quando viu que trabalhar duro, não era futuro. O outro era o orgulho da progenitora.
Dizia para as amigas quando vinha de férias, O rapaz vai muito longe. Foi, Ladino, ia crescendo na mesma proporção que sua mente maquiavélica crescia,esperto manobrador,ninguém suspeitaria a frieza que se acoitava dentro daquela alma.
Rebelde, filho da geração sem respeito, vivia dentro da couraça que lhe encobria as maquinações que então sonhava.
Entrou na grande cidade. Formado em filosofia, encontrou aí o fermento que precisava.
Passaram os anos, a cidade das luzes fascinou-o. Tornou-se o seu palco favorito.Tinha tempo. Olhar vivo, como a serpente que espera pela avezinha descuidada, era só esperar Visitador assíduo dos lugares mais sofisticados, dos cafés mais famosos,frio, calculista, esperou.
Chegou a altura de dar o primeiro passo. Tinha tempo. Escolheu.
Menina prendada, culta,inteligente, filha da classe média alta, dominando com eloquência três idiomas além da língua materna, não dominava o idioma daquele cavalheiro, bem falante, culto bom conversador, também não necessitava, ele dominava o idioma de Victor Hugo na perfeição. Daí ao noivado foi um instante. Recebido com pompa e circunstância na casa dos futuros sogros, insinuava-se facilmente, com desenvoltura. Abriram-lhe as portas do mundo por-que sonhara tantos anos. Os pais iam acreditando ter ali um ser superior.
Começava aí a falsidade dos objetivos.
Casamento com pompa e circunstancia,a pátria de Racine, ganhava mais um ser superior, mais um académico.
A esposa cedo se apercebeu das falsidades, da frieza, do calculismo do marido.
Tudo ia escondendo ,evitando a seus pais o desgosto do engano cometido. Cedo se apercebeu que por baixo da candura do noivo,esposo amado, se escondia uma mente perversa, cínica, falsa.
Não era mais aquele ser que conheceu como noivo, amou como esposo.
Não era mais aquele ser que cativava com a elegância da palavra de La Fontaine, com a finura de Racine.
Tornou-se rude grosseiro, Além da cultura que tinha não conseguia ocultar as origens. Mais parecia um personagem arrancado á história,parecia a encarnação da brutalidade de Robespierre,do cinismo de Danton, sem ter a grandeza deles.
O fim chegou.Tragicamente chegou.
A farsa montada com tanto empenho chegou ao fim; o personagem, verdadeiro,vivo, encarnou muito bem o personagem de um romance famoso de Eça de Queiroz, O CRIME DO PADRE AMARO.
Da outrora felicidade, ternamente cantada sussurrada, ternamente vivida, enganada, nada resta. Apenas lágrimas que entretanto vão secando, lentamente fazendo esquecer, varrendo da memória um passado vivo, de mentiras e desilusão