SOB O PERFUME DE CIDREIRA
Vinha dum tempo amnésico aonde pouco se situava, a não ser pelo atavismo do entorno e pelas parcas luzes do seu quarto, que davam estreita luminosidade ao estranho ambiente de ontem.
Ainda sentia medo e vez ou outra acordava lá na remota infância aonde ouvia um sino tocar ao longe, ao som dum terço de Ave Maria vagamente acompanhado duma canção de ninar.
A reza parecia vir da sala ao lado, quando sentiu um beijo na testa.
-Não tenha medo vovó, eu estou aqui.
Então, olhou para o relógio da cabeceira e, sem reconhecer as horas, entre algumas rachaduras do seu peito, sentiu que a vida passara por lá, entre as mesmas quatro paredes do seu hermético quarto, de lá partindo a lhe fechar a porta do tempo.
Procurou pelo bichinho de pelúcia que ganhara ainda outro dia e com quem dormira nas noites adolescentes.
-Aqui está ele vovó, abrace-o, e durma em paz.
Como tudo ali lhe era estranho, abraçou um velho travesseiro de plumas e, sob o perfume dum chá de cidreira, adormeceu acreditando que ainda estava viva.
Nota:
Baseado numa realidade surreal.