Monomotor da Felicidade
Corria desesperadamente pelo matagal de Ortiz, localizado a dois quilômetros de casa. O dia estava bonito – céu claro, sol à meia altura –, acima da minha cabeça um monomotor fazia seu trajeto, razante e poético. O piloto era meu vizinho Juemir. Um homem de 40 anos que descobriu a liberdade ao sabor das nuvens. Sempre aos domingos, durante a tarde, ele voava. Para mim, o barulho do motor soava como música. Sempre quis fazer o que Juemir concretizava nos ares: o sentimento de leveza guiado por asas de policarbonato. Decidi voltar, já era hora do almoço e minha mãe se posicionava indignada ao pé do marco da porta de casa sempre em que eu chego três segundos atrasados, sentenciados a partir das onze e meia da manhã. Ao correr, sentia o matagal roçar minhas pernas pálidas de sofrimento, o barulho alucinógeno do monomotor fica para trás, eu deixava minha vida naquele campo para servir de operário dos meus pais.
O almoço estava servido. Encontrei meu vô sentado numa das cabeceiras da mesa. Noutra, estava meu pai, ávido e rancoroso. Meu pai era uma das poucas pessoas no mundo capaz de transportar 37 personagens dentro de si. Se fosse possível, acordaria 37 vezes ao dia e daria sentido aos 37 atores que se demonstravam perante a sua face no decorrer do rotação da Terra. Se tratava de um caso “múltiplo de bipolaridade”. Àquela hora, no fatigoso almoço, ele transmitia indignação e reclamava do avião do vizinho. Disse que iria matar o piloto um dia. Eu acreditava nas declarações do meu pai. Na sala ao lado havia uma espingarda dos anos 80, otimizada, feita para dilacerar qualquer pessoa que se metesse à frente. Além do mais, meu pai poderia ter 37 motivos para matar o vizinho. Ao lado direito dele, na horizontal da mesa, minha mãe, entristecida pela vida, servia comida ao meu irmão Juca, de cinco anos. Prezei pelo silêncio erguido pelo momento, comi uma ou outra colher de arroz e feijão e me retirei. Encontrei no meu quarto a janela dos meus sonhos. Ao fundo, ainda admirando o tempo bom que se firmava, eu via a calda do monomotor de Juemir. A paisagem era bela, afrodisíaca. Não lembro quanto tempo permaneci naquele estado de êxtase, o que recordo é de uma interferência sonora. Da paisagem, testemunhei o inferno. Fogo. Chamas. Gritos. Eram conseqüência do tiro de espingarda proveniente da minha casa, manuseada por uma das 37 pessoas que habitavam meu pai. A bala foi certeira. Acertou o cubo do monomotor, travou a hélice e derrubou o avião. Juemir estava morto.
Uma semana depois.
- Dona Nena não toma jeito, olha o vestido dela. Parece uma toalha de mesa.
- Não seja idiota, é da época dela. Ela gosta dessas coisas.
- Mas ela pode gostar em casa, onde ninguém vê isso. Fora a parte física. Sobra carne para manga.
- Deixe de ser maldoso.
- Cara, cansei dessa aula de português. Eu vou dar no pé. Vai ficar por aqui?
- Eu gosto desse conteúdo, vou ficar sim.
- Boa sorte, cara. Fui.
Vinícius saiu pela porta da sala de aula sem que a professora o visse. Era um colega irracional, imaturo e negligente com os estudos. Estávamos em uma turma do terceiro ano do ensino médio onde eu era o único que falava o português correto. É o carma das cidades do interior. Vila Maria do Sul fica a 680 qulômetros de Porto Alegre. Aqui há mais mato do que casas. A única alegria da cidade era o monomotor de Juemir. Uma semana depois do crime, a cidade ainda murmurava aos sete ventos o ocorrido. Me sentia hostilizado por alguns colegas e pessoas que cruzavam comigo na rua. Afinal, sou filho do assassino. Meu pai sumiu depois de abater a aeronave, e quem paga a conta é a nossa família. Voltando ao colégio, Dona Nena era irmã de Juemir. Em 40 minutos de aula, ela não olhou, sequer por um segundo, uma única vez para mim. Ao contrário do seu irmão, que se fazia presente em espírito. Ele ocupava uma cadeira muito próxima de Dona Nena. Enquanto ela escrevia no quadro, Juemir olhava para as costas da irmã com admiração. Mas, na sequência, de forma abrupta, Juemir se vira para trás e me fita com louvor. O sinal toca. A aula acaba. O espírito desaparece. Dona Nena baixa a cabeça e só escuta a pressa dos alunos sair pela porta.
Voltei para casa desesperado, agora pelo susto causado pelo espírito. Quando cheguei, presenciei minha família inteira aos prantos. Estavam todos desolados, inclusive meu pai e o vizinho, Juemir. Fique perplexo, confuso, o que estava acontecendo? Meu pai voltou? Juemir não está morto? E por que estão todos chorando? Com medo de cada passo que eu dava, entrei na sala e ninguém notou pela minha presença. Dei mais alguns passos e, na sala ao lado, próximo a mesa de jantar eu avistei um caixão. Receoso quanto ao corpo que poderia estar lá dentro, me aproximei. Foi um momento de pura descoberta. Dentro do féretro feito de madeira oca, com pouco conforto no seu interior, eu me vi de olhos fechados e com as mãos cruzadas sobre a barriga. Era eu que estava morto. Novamente desesperado, voltei a correr pelo mesmo caminho, notei que não sentia mais o mtagal roçar minha perna. Ao fundo, pudia avistar Vinícius, que corria em minha direção; de longe já se ouvia os seus gritos:
- Nós estávamos naquele avião! Nós estávamos naquele avião!
Ainda desconecto, não ligava ponto a ponto, mas entendi o que havia acontecido. Quando finalmente eu conquistei meu sonho de liberdade, alcancei o plano de voo da morte. Devo, ao menos, ter morrido feliz.