A Navalha

“A idéia do suicídio é uma grande consolação: ajuda a suportar muitas noites más.”

Friedrich Nietzsche

“O que você quer amar que ninguém nunca amou?”

A navalha do desejo dança em suas mãos brandas e suaves. Tão tenros são seus dedos e tão pálido seu rosto farto. Inclinada com a fronte escorada sobre o seu próprio ombro, senti. Sua dependência não é de drogas: ópio, éter, álcool, sua dependência é de uma simples idéia – uma idéia baseada em uma filosofia que lhe alivia a “alma” (o que é possível sentir), um pensamento demente?

Todas às noites há um encontro firmado entre sua consciência realista e sua consciência demente. Exatamente às duas horas e vinte minutos da madrugada, estabe-lece-se um elo, outrora estranho – hoje natural. Nos primeiros dias sentia-se infeliz e vestida com remorso. O tempo efêmero estendia-se até a harmonia da ação e a aceitação da idéia.

Deparava-se todas às noites com o anseio de dilacerar os pulsos e finalmente morrer. A dor a embriagava, nada mais além da dor da perda de um sentimento soberbo. O orgulho soberano entrava nas veias adjacentes a dor e talvez a única forma de retirá-lo do corpo, era cortando-o, afinal ninguém morre de dor ou de remorso, apenas inebriam tais sentimentos sublimes até a ojeriza, e um pouco empós o suicídio.

Compreendera em uma das noites a frente de um espelho, o real sentido desta idéia de suicídio – transfigurando-o. O sorriso era de renovação. A navalha nos dedos era tida como um ser supremo, um ser melhor, divino e surreal. A idéia do suicídio era uma esperança aos seus olhos, uma mão invisível acariciando-a e consolando seu pesar, sua dor agônica, que a cada noite esvaia-se com a navalha em mãos, sabia que naquele momento tudo poderia acabar e a morte lhe daria liberdade. Entretanto, a sensação que a navalha lhe oferecia não possuía nome, não tinha semblante – era por si única e inalcan-çável por outro ser de sua natureza. Um sentimento egoísta, um sentimento sem nome.

Decorreram os dias sempre a espera da noite.

O pior em uma decepção é rememorar as muitas vezes em que se poderia decep-cionar outrem e simplesmente não o fez, devido ao tal amor recíproco. Logo, lhe remeto a elucubração: outrem lhe ama? Ela amava a navalha, e o que é o amor? Um sentimento de dedicação ao outro? A navalha se dedicava a ela, lhe suavizava o corpo e a carne, a navalha sacrificar-se-ia por ela – nela. Ainda assim esta idéia e reflexão não lhe faziam uma demente, muito pelo contrário, transformavam-na em um ser melhor e superior aos demais, alguém com um pensamento peculiar.

Prontamente o tempo decorria, a sensação aumentava, crescia e tudo que cresce deve-se alimentar segundo seu crescimento. Às duas horas eram tardes e foram para exatamente meia-noite. Todas as noites neste horário, ao que ampliava sua dependência de encontrar-se sozinha com a navalha, ateava-se a abundância de sua esperança sórdida.

Em três semanas a mulher não mais saia de casa, via-se completamente depen-dente e feliz ao desfrutar aos risos unicamente de ter em mãos sua navalha, não mais se alimentava com comida ou inebriava sequer d’água, vivia sorridente e dançante pela casa com sua preciosidade exuberante sobre os dedos. Plenamente obcecada e satisfeita, pela primeira vez em vida, não avistava outra finalidade em viver senão aquela.

Certa noite, de tanto dançar ao som de sua vitrola, despencara com dor nos pés ao chão e adormeceu de cansaço ou talvez apetite pela felicidade inacabável. Ao acor-dar, com um leve barulho ignoto, rapidamente procurou sua navalha – sua amada, no entanto, não a encontrou. Iniciou de imediato uma sensação de desespero fulminante, uma sensação totalmente contraposta a que sentia anteriormente, um sentimento que também não tinha nome e nem face. Tomada pelo o inesperado, começou a revirar suas cousas em busca de seu amor. Caminhava com os olhos da procura, o tato da busca, o sentimento da falta, a dor vindoura da perda, a privação da esperança – tudo em vão, pois a navalha desaparecera.

A noite arrastava-se no tempo, travava consigo o relógio e a mulher enlouquecia.

“O que você quer amar que ninguém nunca amou?”