A Viagem dos Nós (parte 1)

Parte 1 – Sobre um cara que some depois de se ver num livro

Ele estava no meio da internet e buscava interação. Enquanto digitava coisas absurdas numa página sem valor, meditava sobre o banco central. Em outra janela, desmentia uma menina que insistia em dizer que ovos vermelhos tem maior poder hipnótico que cabras velhas. No fim, ele lamuriava seu poder de sedução – a menina hesitava em distribuir seu celular.

O debate acabou em dez a zero e o tempo abafou sua dor de cabeça: simplesmente perdeu a oportunidade de tomar banho ao mesmo tempo que a novela das oito. Embora triste, ele partiu prum livro de auto-ajuda chamado psicologia para desajustados. Abriu e encontrou uma folha em branco onde se lia seu nome. Inseguro, foi pro final do livro e leu. O que ele leu estava escrito em linhas desconexas e exigia uma faca de corte preciso, e mesmo que não tivesse faca que o amolasse, arrancou a última página com os dentes. O gosto do sangue era só seu...

Ele.

Eu, quando o vejo, não deixo de pensar no quanto é bonito. Tem olhos tão imprecisos que me faz querer lutar por sua vida. Então, no dia em que sua boca sangrou qual não foi meu desespero em ser marcado por seu sangue. Me senti fraco e perdido na impossibilidade de fazer sarar aquele momento degradante; queria a todo custo ser forte o suficiente pra salvá-lo! E o beijei, enfim.

Nosso beijo foi rápido. Ele limpou a boca com a mão em sinal de nojo e me olhou com ódio mortal ao constatar que passou a imagem de veado. Depois me perguntou se dava muito na pinta, se era seu jeito de andar ou sua voz. Por algum motivo absurdo, tinha queixa ferrenha da voz, e segurando a garganta com virilidade, falou com a outra mão sem me olhar. Pedi que a levasse ao ouvido pra desatar a verdadeira verdade, mas ele já estava contaminado pela idéia da voz merreca-gay, e fiquei com raiva do beijo mais do que de ter sangrado de volta pra ele.

Meu beijo foi incrivelmente longo.

Depois daquele dia ele nunca mais veio pra faculdade. Ele queria emburrecer, procurava justificar sua abstenção por meio de tópicos filosóficos ralos pautados em aulas intergalácticas. Fez questão de postar uma foto sua ao lado de um imenso telescópio; nem tão imenso... Que seja. Seus olhos continuavam imprecisos, mas eu não sabia mais se o herói persistia em mim.

Ontem me disseram que o herói morreu: eles sempre morrem, ratificaram. Fiquei inconsciente por sete horas esperando que alguém esfumaçasse baseado na minha cara. Joana serviu a seu propósito e seu cheiro era altamente consumível. Nós fundimos ali mesmo, em cima da mesa onde a gorda Túlia gritava sua matéria inútil acerca do pensamento platônico na etimologia da palavra foder; sua bunda era gigantesca, grotesca! Descobri que os heróis realmente morrem, e ainda: que existia um livro que tinha o nome dele na primeira página.

- Como pôde manter isso longe de mim por tanto tempo?

Ela nem sabia o que responder; coçou a cabeça.

- Como, hein? Esqueceu que eu te dei meu sexo?

Percebi que ela, ao invés do que eu pensava, tinha acendido os cabelos.

Foi delirante ver os fios queimarem em oxigênio. Ela olhou pra mim com a intensidade de quem diz: meu nome é Joana! Puxa, como ficou bela dançando com as chamas. Joana tinha charme e sedução; o quadril era leve no balançar e, em meio ao caos da cabeça, permaneciam serenos na mágica do tesão. Pedi que parasse com o show por um momento.

Ela assoprou.

- Eu nem sei o que dizer... Foi meio sem querer. Hoje cedo vi o livro na cama dele, não tinha a última página.

- O motivo do sangue...

- Qual? Que sangue?

- O sangue dele. Ele tinha um ferimento na boca um dia desses... Deve ter se machucado com o livro.

- Odeio essa palavra: machucado. É tão infantil! Me odeio criança!

Joana soou patética.

- Que se dane!

- Acho que as palavras contidas na última página eram demasiado perigosas pra um sujeito que tem seu nome marcado na primeira!

Joana me assustou com sua beleza.

- Caramba, de onde veio você, Joana?

Ela sorriu, nem um pouco embaraçada. Assumiu a figura de mulher soberba, com todo seu potencial desbravador à flor da pele. Seus seios se tornaram marcantes, seus olhos umedeceram com meu encantamento espontâneo e a pintura se fez sem cores chamativas.

- Vim de onde venho sempre, mas minhas palavras passaram longe do sempre, admito. – ela ajeitou um fio chamuscado, gemendo graciosamente ao som do violino do andar de baixo – Sabe, onde não há constância, busco coragem. Devia fazer o mesmo!

Nossa, essa me atingiu em cheio! Estou nu. Se soubesse que era uma batalha teria trazido minhas granadas e fuzis, talvez uma caneta de tinta vermelho-sangue e um par de meias pro frio. Mas não era uma batalha! Ela, Joana, era minha na alma. Sabia dos meus medos e meus pontos de fuga semântica. Eu podia dizer que não desejava salvá-la, todavia crescia em mim agora a estranheza do que dizem ser - estalar de dedos – não quero dizer claramente, mas é amor.

Saí correndo de lá. A faculdade me assustava nessa tarde, parecia estar se fechando com seus galhos velhos, folhas secas por todo lado. Corri escada abaixo com a certeza de que deixara o amor pra traz. É claro que a idéia me animou à princípio, mas não consegui manter a calma do não-amor por muito tempo. Os corredores tinham pessoas classificadas como estudantes; queria perguntar o que estudavam. O violino me descobriu.

Segui a música até a sala onde tinha um homem-violino.

A faculdade era assassina ao me fechar, e justo quando era pra eu me sentir confortável lá dentro. Escondidinho, no calor, no escuro, no eu dos pensamentos, no estudo.

- O que você está aprendendo aqui?

- Como?

Não, não ia me repeti. Ele devia parar de tocar aquela droga de instrumento se quisesse realmente me ouvir. Subitamente me veio o talvez não querer. O sentimento amargo que me subiu pelo ventre era vergonhoso em tons claros de vômito. Pena que não comi muitas palavras doces naquela manhã, embora com certeza tenha comido mais do que posto pra fora.

- O que está tocando? – perguntei.

- Não está ouvindo? – respondeu, respondi. Entendi, perguntei.

Não, eu não estava.

Faz muito tempo que não ouço nada além do oco silêncio da minha madeira. Quando eu era um bebê lembro bem de que só ouvia o som da chupada, ele me completava de tal forma que construí uma curiosa certeza: futuramente seria um belo rapaz cheio de leite. Fui inteiro até não ser mais um bebê. Constatei pela matemática simples que meu corpo não tinha uma gota de leite, e tudo que ouvi a seguir foi a imensidão do meu vazio, o qual eu cutucava até incomodar; pulava de parede em parede e nem escutava minha vontade. A partir dali só o coração da minha mãe batendo era música.

- Isso é música?

- Você me diz...

Odeio quando esperam que a gente responda nossa própria pergunta. Não fiz faculdade de psicologia depois que vi a cena de um terapeuta aconselhando o pagante a se matar com o pensamento, ou, se matar como pensava em fazer, ou seja, o tal coitado tinha uma pergunta e a fez, e o malvado pediu que encontrasse a resposta sozinho. Ah, e aí a resposta era feia demais e a solução foi a morte, eu acho. De qualquer maneira, me desgostava pensar, odiava gastar tempo demais numa mesma palavra já que ela era composta de letras que aprendemos quando somos pequenos e estranhos. E o que tudo isso tinha a ver com o que éramos quando fomos grandes?

- Eu não sei dizer, toda música que conheço vem do coração da minha mãe.

Ele parou de tocar.

O violino permaneceu na sua mão, e sua figura ficou na mesma, por isso não me alarmei: ele não olharia pra mim. Não por mim, mas pela minha mãe, que de repente estava imperfeita ao meu lado com um saliente coração ritmado.

- Legal. Explica pra mim.

“Legal. Explica pra mim.”? – Esse cara era sério? Não que eu me incomodasse, até podia gostar de gente sem piada na manga, mas era difícil com o violino e tudo. Ele era muito som pra mim, tinha inveja. E me veio que teria que explicar... Olhei pra minha mãe pelo canto do olho, sabendo que ela me questionaria sua presença ali; ela questionaria.

Duas questões num período curto de tempo!

Mãe vem sempre na frente, eu sei disso, mas minha mãe já morreu na minha história e ressuscitá-la traria toda sua vida de volta. É bem lógico da minha parte, não? O homem-violino me esperava e havia sempre o risco dele voltar a tocar. Não podia me deixar arrasar.

- Mãe, vou botar pra quebrar!

Mãe vem sempre primeiro.

- Olha aqui! Só porque você tem um violino cheio de música não lhe dá o direito de questionar minha autoridade quanto a entendedor de mães e leite! Quero que saiba que me encanta te ouvir tocar e que agora sinto estar perdendo minha mãe por sua causa. O que você me diz a esse respeito?

Ele me fez lembrar minha "ocassência".

- Eu vou continuar porque você fez silêncio ou que “sim” com a mente. É! Você sabe que eu odeio estudar nessa faculdade de merda, e que eu gostaria sinceramente que todo mundo se fodesse, e você, como membro dessa sociedade babaca de aprendedores do nada, está incluído! Então abaixa a porra da calça pra eu meter!

- “aprendedores” não existe e “fodesse” é com u!

- Não, não é! - pavor de insegurança asfixia sempre! – Quer dizer, depende do ponto de vista!

- O que você quer meter, meu compadre?

Lá vem ele querer me assustar. Pra quê? Eu já estou me borrando de medo e ele nem precisou me apontar o violino maligno. Mas o meu poder sobre a inconstância tomou meu ser e se tornou chefe de mim.

- O que eu quero meter nesse seu ser magricelo indevido é toda minha neura de uma merda de vida sem música que me frustra até os confins das passadas horas de ócio interplanetário (quis dizer Internet mesmo).

Ele me olhou finalmente. Seus olhos tinham um tédio que me deixou surpreso gratuitamente. Uma coceira começou na minha garganta. Uma boa de pena branca e singela, caindo leve pelo sistema irrisório da seriedade.

- Não entendi. – ele começou.

- Não sei porquê, mas seu tédio me enche de graça. Posso rir?

- Sinta-se em casa.

Ele voltou a tocar e eu caí na gargalhada. Ri muito, ri até doer minha caixa torácica, voltando até minhas pernas bambearem. A cada risada eu abria os olhos para me ver rindo. Quando fechava, lembrava de todos os instantes barulhentos pelos quais passara. Vislumbrei festas enfadonhas, pessoas dançando em câmera lenta, rindo e caindo, desgraçadas, engraçadas. Vi a guerra e o incrível relacionar dos dois: a grande festa da morte sobre a vida, os ossos roídos vagarosamente, os dentes quebrados rindo fantasmagoricamente, o espaço vazio da destruição, a dança mil e cem das botinas com o sangue e a lama, o prazer de todas as mãos, sem número e nome, mãos dadas - eu vi o mar sangrando à espera de alguém que lhe dissesse que era natural, que fazia parte do seu curso.

- Eu me perdi – disse! Precisava urgentemente que ele me ouvisse alto.

- Você me ouviu tocar?

- Ouvi, e vi a guerra. O que te faz tão triste?

- Triste? Vivo em festa!

- Tem certeza? – minha incredulidade sempre me atrapalhava – Digo, não digo, quer dizer tenho dito muito que digo sem dizer ainda. Mas logo vou dizer, eu sei.

Ele não entendeu, nem eu. Quem era esse impostor?

Continuei.

- Sei (pensei em dizer “Que eu saiba” sem o “que” que segue) que guerra é uma coisa errada!

- Falou que nem criança, mas eu o perdôo. – ele riu, e me olhou pela segunda vez. Desejei fechar seus olhos com minhas mãos (como estavam frágeis nesse momento, com restos de folhas) e pedir que adivinhasse quem era; era certo que erraria.

- Guerras são erradas no seu motivo, início. No meio, os participantes se desprendem e definem seus destinos individualmente menos incorretos. No fim, eles estão todos certos de que aquilo tudo foi um teste que começou mal e terminou no melhor por algum motivo, - ele sorriu de novo e foi brilhante – e dessa vez foi pelo motivo correto.

- Não entendi nada que você falou, mas entendi seu sorriso.

Ele largou o violino agressivamente no chão e veio na minha direção, não correndo, mas furando o chão ao passar, deixando rastros profundos de sua presença que traçariam seu destino. Parou na minha frente, fitando uma girafa piscando nos meus olhos.

A faculdade desmoronou.

Foi uma ventania de gritos e correrias. As folhas subiram todas ao teto e os galhos foram cacos ao chão. Cabelos viraram olhos. Os estudantes encararam o escuro pela primeira vez, não sem temor, mesmo que com a iminência do descabelar.

Só a música baixa no chão. Senti a necessidade extrema de abaixar pra pegá-la: era o frio do ar condicionado! Que oportunidade não teria o frio se o calor lhe mostrasse o caminho?

Ele me abraçou com força. Todo seu clamor de vida estava sendo pressionado contra o meu peito, senti estourar em segundos. Os segundos me deixaram na mão. Preso como nunca antes, nem quando esperava o leite em forma de droga, tal quando o livro começou com seu nome... Ele; me esqueci. E ainda tinha o amor e toda a situação complexa da Internet. Que merda toda era essa? Me solta! Seus braços, respiração, palavras estavam sobre mim como correntes.

As pessoas venceram o vento. Se olharam nos espelhos das outras e tiraram os cabelos mutuamente. Viram a verdade: os cabelos estão sempre em excesso. Precisavam fugir dali, de uma da outra. O horário findou, o aprendizado acabou.

O abraço dele chegava ao fim junto de tudo. Eu não conhecia o que dizer a seguir. Seria constrangedor. Podia encarnar um comercial de línguas emboladas e vender uma cabeça portátil movida a incertezas. O violinista se desfez de mim e correu pra salvar o violino. Droga! Me veio uma estranha sensação de choro... meus olhos arderam, eu ia chorar e não queria... Puxa! Não queria...

- Volta!

Quem pedia? Tal não seria minha súplica? Por mais rentável que pudesse ser um pedido de afeição, eu não sucumbiria aos altos preços das taxações sobre traição, e sabia que trairia mais cedo ou mais tarde. Passaria a afeição pra frente. "Vem pra me buscar!", berrava dentro de mim essa voz que agora assumia plenamente vibrações super-gays.

-Volta! Volta! Volta!

Eu chorava mais e mais. Girava no meu próprio eixo, frenética e pessimistamente. Os meus urros eram de urso real, captavam os horrores da minha alma, submetiam-me a viagens às minhas maiores imperfeições. A raiva crescia monstruosamente!

O homem-violino pulou pela janela para salvar sua alma (ex.: música, afeição, amor-próprio, bateria).

Estátuas e cofres se pintaram na parede. Estava num museu onde era apresentada minha história. Aos poucos tudo ia se acalmando, o coração ia retomando seu ritmo de sempre. Minha mãe estava representada bem na minha frente - ela abria a exposição dedilhando o violão. "Mãe, vem me ninar! Quero dormir!", logo ali me lembrava dos inúmeros porquês chorosos. Meus olhos pulsavam, sentia-os vermelhos. Como era bom tocar minha vida em outra vida. A paz quase me abraçava, as paredes estavam cobertas de segredos. Que queimem todos! Heresia, heresia!

Minha inquisição particular começava.

Caça às bruxas! Minhas doces bruxas!

J Jesse
Enviado por J Jesse em 09/04/2010
Reeditado em 09/04/2010
Código do texto: T2187746
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