A altura duma decisão

A ALTURA DUMA DECISÃO

...que adianta ao homem conquistar

o universo se... “se perde a alma”?

OSCAR WILDE

Um antigo prédio comercial se localizava no centro da cidade “Pedra das Trevas”. Não era nenhum arranha-céu – estava longe disso - mas era alto em comparação com a grandeza da cidade. Defronte e um pouco ao lado esquerdo, encontrava-se uma praça recém-reformada, contudo, temos a certeza de que a sua beleza está fadada a desaparecer, tendo em vista a atitude da sua aparvalhada população em destruir tudo o que novo se apresenta. São como traças, adoram envelhecer e destruir toda a estética dum bom livro. Assumem o papel que fora outrora de Átila, O Huno, isto é, são os verdadeiros flagelos de Deus, tudo o que tocam se destrói.

Eram duas e cinqüenta da tarde, o calor era intolerável. No penúltimo andar do prédio, Victor Farias contempla justamente esta praça, bem abaixo dos seus pés. Como ele adoraria está no último andar, mas... seria ir contra a hierarquia, era o recinto de trabalho do seu chefe! “Quem sabe num dia próximo, bem próximo...”, ponderou. A megalomania dominava sua personalidade sem incrivelmente ele perceber. Em seus agitados sonhos, uma frase condicionava a sua existência: “Os fracos devem sustentar o peso dos fortes”.

Aliada a mania de grandeza, o seu exacerbado orgulho tinha uma amizade bem íntima com o seu delírio de nobreza. O que impressiona é que ele tinha tão pouco em relação ao verdadeiro esplendor, no sentido mais vasto da palavra. E esse pouco em relação ao que seja realmente pouco perante a abastança, não atinge nem um mísero grão de areia num extenso deserto. Em suma, ele próprio está neste deserto onde a paisagem nunca muda, e toda a mudança que se opera ali, tenha certeza de que é uma miragem cruel e efêmera.

Victor era um varão que carregava seus trinta seis anos nas costas; olhos negros; rosto murcho; bem moreno; cabelos pretos e lisos partidos ao meio; estatura alta e um físico que se assemelha a um prisioneiro dum campo de concentração nazista; ostentava um grande cavanhaque, vestia uma camisa social branca e uma calça preta também social. Sofria duma grave ulcera.

Victor tinha seu olhar fixo na praça e num dado momento de sua contemplação, ele nota ali uma lindíssima mulher flutuando. Ela vestia apenas um longo manto branco que cobria grande parte do seu corpo e, apesar da inexistente brisa, esvoaçavam seus cabelos longos e dourados. Aquilo o trouxe de volta à realidade ou à certeza de que ela parecia estar bem distante. Na verdade, Victor Farias não sabia a resposta e, para o seu próprio bem, era melhor que não soubesse. Mas o fato é que aquela coisa ainda continua a flutuar e ninguém ainda a viu, apenas Victor. E o mais estranho ainda é que a linda donzela estava vindo na direção do prédio. Seu corpo transpassa um carro e ela olha para cima, exatamente para os olhos de Victor. Ele estremece. Como num passe de mágica o espectro desaparece. Alguém bate na porta. Victor não responde. As batidas continuam. A porta se abre.

- Aqui está o relatório que pediu.

Victor dá um longo suspiro. Era a sua secretária; uma linda morena de olhos castanhos, estatura baixa, cabelos pretos e encaracolados, pernas bem torneadas e médios bustos.

- A tua ineficiência consome meu estômago aos poucos, não sei como não pereci ainda. Pedi esse maldito relatório pela manhã! – gritou Victor – O chefe me culpou por esta morosidade, mas sabemos de quem realmente é a culpa. Não abra esta maldita boca para se defender, meu estômago agradece. Se eu bem me recordo, o teu horário matutino começa às duas horas, não às três. Você já faltou ao trabalho sete vezes somente neste mês. Isso é intolerável. Arrume suas coisas e suma daqui. Irresponsável!

- Tu não deves me tratar assim. Tu não estás a ver nenhum animal na tua frente.

- Certamente! Um animal seria de todo mui mais útil. Saia daqui agora! Inútil!

As lágrimas vertiam na linda e morena face da secretária. Com passos vagarosos, ela sai da sala de seu carrasco. Ouve-se apenas um estrondo na porta.

“Desprezível!”, reclama Victor, com uma expressão um tanto amuada. Novamente ouve-se alguém bater na porta.

- Eu mandei você ir embora!

Ninguém responde. Estranhamente Victor se assombra com o rosto do belíssimo espectro de evidente alvura transpassando pela porta fechada, logo em seguida todo o seu corpo adentra no recinto. O rapaz fica atônico com aquilo que está a presenciar. Seu corpo fica paralisado, a sala se ilumina intensamente, desaparecem todas as sombras e todo o ar ali torna-se rarefeito. O ar condicionado para de funcionar, não obstante, o frio se intensifica deveras. De fato, o que faz Victor ofegar são os olhos azuis daquele suntuoso ser de orelhas pontudas. Ela acena com as mãos para que o rapaz a siga. Para ele era impossível resistir, pois cada vez que aquela deusa se afastava, o corpo de Victor parecia se definhar, porque o espectro levava consigo todo o oxigênio e energia que ainda restavam na sala.

Com muita dificuldade, Victor segue a deusa dourada, que subia a escada e rumava para a sala do grande chefe. Ao chegar ao local, o sôfrego rapaz – que já suava muito – fica terrificado com o que vê: o cadáver do seu chefe completamente descarnado, apenas os frágeis ossos sentado numa aconchegada cadeira preta. O espectro rumina para o cadáver e o toca. Numa fração de segundos aqueles ossos se tornam num montículo de cinzas. Ela aponta o dedo para Victor e a seguir para as cinzas que se encontravam na cadeira. Ao que parece, a deusa dourada flutuante culpava o rapaz por aquele inexplicável ato.

A pele de Victor Farias muda de cor para um apavorante tom roxo.

O ser flutuante caminha na direção daquele mísero rapaz. Ela transpassa pelo seu corpo, fazendo com o coração dele parasse por alguns segundos.

- Socorro...Soco...

Não foi um grito, mas apenas um insignificante sussurro. A deusa dourada vira-se de súbito para Victor e faz-lhe um gesto de censura por aquele pedido de ajuda. Depois disso, ela faz um outro aceno com as mãos e todo aquele raquítico corpo do mancebo começa a flutuar. Se o sonho dele era chegar ao topo, supõe-se que o jubilo deveria está estampado na sua face, ao invés disso, um aparente cadáver triste e com um semblante sofrível.

O topo do mundo, o lugar onde muitos almejam chegar, o lugar onde poucos estão e o lugar onde raríssimas pessoas se equilibram como malabaristas numa linha tênue e traiçoeira. O lugar onde a vertigem nos atrai diretamente para o abismo, onde os ventos nos empurram para o precipício, onde nós temos a ilusão de que tudo o que está lá embaixo é medíocre.

O topo do prédio comercial, o local onde o espectro atraiu Victor Farias. Este último tinha o rosto quase cadavérico, pois estava quase totalmente consumido pela presença daquele ser, que aparentemente sugava toda a sua energia; o tom roxo facial já era bastante evidente e seus olhos e nariz sangravam devido à falta de ar.

A deusa dourada faz outro aceno com as mãos e com isso o corpo do rapaz, que até então flutuava, vai ao chão. As poucas forças que ainda lhe restam são usadas para a tentativa de ficar em pé. Com passos vagarosos, Victor caminha onde está o espectro, que agora flutuava além das imediações do prédio, ou seja, se Victor desse mais um passo, seu corpo haveria de cair duma altura de quinze andares.

Victor hesita dar esse passo, mesmo com a súplica da deusa dourada de branco, que o chama pelo nome com uma voz sussurrante e lírica. O fato é que o rapaz sente uma outra presença atrás dele. Ao se virar, ele se assombra ao ver a sua secretária portando uma adaga. O que mais o chocou também foi o fato de vários tentáculos cobrirem aqueles lábios que outrora eram carnudos e voluptuosos. “Estou enlouquecendo”, indagou. O olhar da secretária era ameaçador e ela estava decidida a fazer aquilo que achava certo fazer naquele momento.

O pobre rapaz agora tinha de tomar uma rápida decisão, pois o tempo era um luxo desnecessário naquela situação.

A secretária se aproxima da sua vítima, que já foi seu chefe e carrasco. Não restam mais dúvidas, eis a altura duma decisão. Então, Victor dá as costas para a sua secretária e pela última vez ele contempla o rosto perfeito da deusa dourada de branco. De repente, ele sente a adaga penetrar nas suas costas, mas isso não foi o suficiente para derrubá-lo, e sim, o gesto chamativo que aquele espectro fazia com as mãos, além da sua voz que perturbava os sentidos de Victor.

Este último, numa atitude derradeira, toma impulso, utilizando as últimas forças que lhe restavam, e salta na direção da deusa. Ele não consegue agarrá-la, contudo, arrancar um pedaço do seu manto branco. Durante a queda, Victor apenas contempla, com um sorriso nos lábios, aquele pedaço de pano. Seu corpo ganha cada vez mais velocidade até se chocar no capuz dum carro. Os transeuntes que ali passavam ficam perplexos com a chocante cena. Um grande círculo de pessoas é formado ao redor daquele corpo.

O rapaz, embora morto, ainda sorria e ainda segurava o pedaço do manto branco da deusa dourada. Esta última já havia desaparecido. Ninguém sabia se ela realmente existiu, ninguém sabia se a tal secretária tinha tentáculos nos lábios, ninguém sabia se o grande chefão tinha virado cinzas. Ninguém, exceto Victor Farias.

Algum tempo depois, dois jornais locais noticiaram que uma malabarista e um mestre de obras morreram acidentalmente nas suas respectivas ocupações. Os dois caíram duma certa altura. Os dois sorriam, apesar de mortos. E ambos tinham um pedaço de tecido branco nas mãos.

O que os jornalistas não desconfiaram é que todos eles tinham mania de grandeza, almejavam estar sempre no topo; não que isso fosse uma virtude às avessas, mas havia um sórdido pormenor: eles gostavam sempre de esmagar os que estavam abaixo da hierarquia. Eles jamais desconfiavam de que estariam nas alturas da linha tênue e traiçoeira, onde cada passo deve ser calculado, analisado e – o que é importante – as dúvidas jamais devem estar à frente das alturas das decisões.

Ramon de Freitas Ribeiro
Enviado por Ramon de Freitas Ribeiro em 09/04/2010
Código do texto: T2186575
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