O tédio a priori
O TÉDIO A PRIORI
Loucura é viver quando a vida é dor, e o melhor
remédio para uma alma doente é a morte.
WILLIAM SHAKESPEARE, Otelo.
O investigador da polícia civil, André Bernardo, andava enfastiado até mesmo com o mínimo sibilo duma ínfima brisa. Uma mínima fagulha poderia se transformar, em questão de segundos, numa tempestade sem procedentes. Já faz um bom tempo que o sono lho desamparou. Seus olhos ardiam quando um mínimo raio de luz atingia sua face, por isso sua preferência pelas trevas dos óculos escuros. A eficiência organizacional de informações do seu cérebro já não era mais confiável. A mudança de humor dançava com as transformações das quatro formas lunares.
Era uma tarde rotineira na delegacia da maldita cidade “pedra negra”. O crepúsculo ainda era visível lá fora e ainda trespassava pelas frestas das persianas. O mesmo tédio, a mesma apatia, a mesma ilusão de que o ar nunca se renova. A sala estava fria, o ar condicionado ligado ao máximo. Um completo e eterno contraste: o Hades glacial aqui na sala e o propriamente dito lá fora. De repente, alguém entra na sala sem ao menos bater da porta.
- Bom trabalho, André. O delegado ficou muito satisfeito com fechamento do último caso. Teu relatório foi muito bem produzido. Estava impecável!
André nada falava, apenas fazia um gesto de desdém com a boca. Todos os seus sentidos alterados, ampliados ao extremo. E isso o exasperava bastante.
- Isso chegou nesta tarde para ti. Não há remetente.
- Obrigado.
- Acho que tu tens de relaxar mais, caro André. Eu e o pessoal vamos à praia neste final de semana. O que me diz?
- Deixa-me. Sussurrou André, com uma expressão nada amigável.
- Tudo bem, mas a proposta ainda está em aberta. No entanto, tenho algumas ressalvas: pelos menos abra essa cortina; diminua a intensidade do ar condicionado, teu corpo está vibrando muito; livra-te destes óculos escuros e por último, vá a algum clube. Viva um pouco, companheiro!
Nenhuma palavra é pronunciada pelo investigador. Vendo que não adiantava prolongar o diálogo com aquela pessoa que estava a um passo de perder toda a sanidade, o policial subalterno deixa a sala. O investigador Bernardo se sente bem melhor agora. Ele empertiga o seu corpo esguio e coça os seus cacheados cabelos negros. Olha para a sua impecável mesa, mas não encontra nenhum relatório para análise, todos já foram feitos antecipadamente. Dá uma rápida olhada nas fichas de arquivos, tudo solucionado. O tédio não apenas aumenta, quadruplica.
Ele pega o tal embrulho sem remetente e o abre. Era um artefato em forma dum cristal de 6 cm de raio; dentro dele havia uma água de cor púrpura que se agitava mesmo com o cristal parado. De repente, a água púrpura do cristal começa a fulgurar intensamente. O corpo de André começa a ficar pesado, principalmente suas pálpebras. Ele encosta sua cabeça na sua mesa e finalmente dorme. O sono vence a guerra contra aquele tédio devastador. Com isso, André deixa o artefato cair no chão. O tal item se quebra, fazendo o seu líquido se evaporar para sempre, numa sala onde o ar era renovado bem friamente...
O telefone toca.
- Alô?
- Senhor André, aqui é a telefonista. Há uma pessoa na linha que deseja falar-lhe. Ele afirma ser um velho conhecido seu.
- Transfira.
Um velho conhecido? André se pergunta. Existem poucas recordações a respeito das suas amizades dos tempos de infância. As pouquíssimas que existem, optaram sabiamente pela diáspora ao redor do mundo. O investigador começa automaticamente a fazer suas inferências sobre quem é a pessoa ao telefone. Cláudio ainda está a morar em Sidney e não tenciona voltar ao Brasil tão cedo; Érika está ultra desolada no Acre, apesar de estar ganhando oceanos de dinheiro; José Carlos está na Rússia cuidando da segurança de alguma usina nuclear, provavelmente ele anteciparia sua chegada ao Brasil. Sobrou Pedro Ylan, esse ele não via desde aos nove anos; de fato, o pronto reconhecimento seria impossível.
- Alô?
- Quem fala?
- Não reconhece minha voz?
- É que óbvio que não. Depois de tanto tempo. Mas... acredito que seja Pedro Ylan quem está a falar.
- Muito perspicaz. Como soube?
- A perspicácia faz parte do meu trabalho.
- Interessante. Queria vê-lo. Faz décadas não?
- Sim. O que sugere, então?
- Irmos a um clube.
- Não sou sócio de nenhum.
- Minha prima é sócia daquele clube que se localiza no bairro aristocrático. Ainda mora na mesma casa?
- Acho que sim.
- Se tiver certeza, apanho-o às sete. Combinado?
- Vai depender da lua.
- Até mais ver, velho amigo. Foi bom ouvi tua voz. Ansioso estou eu pelo nosso encontro.
- Até logo.
“Estranho! Muito estranho! Não me recordo de nenhuma prima de Pedro Ylan. Sei que toda a sua família era no Mato Grosso do Sul e eles odiavam o Nordeste. É incrível, mas ainda consigo me lembrar desse detalhe. Que prima? Quando ele e sua família partiram, ninguém por aqui ficou. Que prima?”.
Parece que o sono perdeu a guerra, não para o tédio, mas para a adrenalina. O Senhor Bernardo ainda se lembra do endereço do seu antigo amigo. Ele tenta um contato, mas não mora ali nenhum Pedro Ylan. Já são seis e trinta e cinco. André pega seu case quando a porta se abre, era aquele mesmo policial dantes.
- Você atendeu aos telefonas? A telefonista ficou furiosa.
- Com licença! Estou atrasado.
- Aonde tu vais? O que eu digo para telefonista?
O investigador passa pela porta e não ouve uma importante informação que o seu subalterno estava tentando lho passar. Seus pensamentos apenas se concentravam naquele grande encontro. Nada mais. Um eterno bloqueio auditivo. Uma valiosa informação perdida para sempre.
Às seis e cinqüenta cinco, André chega à sua casa. Rapidamente ele coloca as devidas roupas apropriadas e espera. Seu celular toca:
- André! Sou eu! Já estou aqui na porta do clube à tua espera.
- Achei que tu irias de me pegar aqui em casa!
- Estorvos! Meus créditos estão a acabar. Estou esperando-o.
“Estranho! Muito estranho! Como ele conseguiu o meu número? Será que aquele policial foi seu informante? A telefonista? Como?”.
- André teu celular está a tocar na sua sala. Grita o policial subalterno.
O Senhor Bernardo chega ao clube e se depara com duas pessoas na portaria: uma mulher sentada num balcão e um rapaz que, pela sua vestimenta, parecia ser o porteiro. Nenhum sinal do seu antigo amigo.
- Boa noite! Desejas alguma coisa? Perguntou a mulher.
- Estou esperando alguém.
- Sim, ele estava a me esperar.
André se vira e observa aquele que se dizia ser o seu antigo amigo. Quão magro ele é, em comparação com corpo rechonchudo que ele tinha na sua infância. Ele também é bastante alto, em comparação com a estatura anã que ele tinha na sua infância. “Donde ele apareceu?”.
- Ele está comigo Senhorita. A mulher apenas acena com a cabeça e olha um tanto desconfiada para o investigador.
Eles passam pela roleta e adentram o clube, que era razoavelmente grande. No lado direito via-se um mini-parque de diversões, à esquerda encontrava-se uma quadra de futebol descoberta. Em frente havia um médio salão para fins festivos. Eles dobram a esquerda e descem uma escadaria que vai dá numa espaçosa área aberta, onde dum lado se localizam duas piscinas, uma pequena e outra mediana. Do outro lado, encontrava-se uma lanchonete. As duas saunas localizavam-se mais adiante.
- Onde está a tua prima? Achei que ela é era a sócia.
- Estorvos, André. Mas me conta como tu tens passado?
- No mais imerso tédio. Esta cidade é o fim do mundo.
- Depois de hoje, o tédio não fará mais parte da tua vida.
- Duvido e custa-me muito tentar.
Primeiramente eles tomam um refresco na lanchonete, então resolvem pegar uma sauna a vapor logo em seguida. Pedro Ylan calado estava a todo o momento. Eles adentram na sauna a vapor, onde dois idosos proseavam. Depois de dois minutos, os idosos saem, mas antes de saírem, eles olham com certa desconfiança para André. E por mais de dois minutos nenhum dos dois pronunciaram uma só sílaba.
De súbito, o investigador começa sentir vertigem. Sua respiração torna-se labial, logo em seguida, a fragrância do eucalipto o sufoca, por fim, a queda. Ele tenta se erguer, mas seus próprios músculos não se sustentam.
Sua visão torna-se ora nítida ora opaca. No raro momento da nitidez, André se vê estatelado no chão da sua sala de trabalho. Mas isso foi por pouquíssimo tempo, porque o cenário rapidamente muda de configuração. Novamente, o Senhor Bernardo se encontra na quentíssima e sufocante sauna. Suas forças incrivelmente voltaram. Seu corpo está envolto de suor. Ele nota que seu ‘antigo amigo’ mais parece uma estátua ali, sentado e imóvel. O investigador começa a andar em círculos no centro da sauna, tendo como telespectador, a indiferença de Pedro Ylan. André leva as duas molhadas mãos ao rosto e quando ele as tira, ocorre o chamado deja-vu: seu “amigo de infância” se encontra ao seu lado e os dois idosos ainda estão a prosear num canto da sauna.
- Alguma coisa o aflige, André?
- Não estou passando bem.
- Saiamos daqui. Vamos nadar um pouco. Isso aumentará ainda mais tua adrenalina.
“Aumentar a minha adrenalina? Mas eu estou a enlouquecer!”.
Eles se banham primeiro num chuveiro. André abre a geladeira da sua sala, pega o vaso de água e joga em seu corpo.
Chegando à mediana piscina, André nota que há luzes púrpuras nas laterais do fundo das águas turvas. Mesmo assim ele mergulha até atingir o piso. Ali ele vê a imagem de Pedro Ylan num sanatório, agonizando, gritando, clamando por “André”, por último, o derradeiro salto no escuro púrpuro da piscina.
O investigador emerge do abismo. A piscina parece não ter fim, o aparente infindável oceano. Lentamente, uma cabeça duma pessoa emerge bem em frente do Senhor Bernardo. Primeiro os olhos, depois o nariz. Era Pedro Ylan. Mas havia algo de estranho nos seus lábios, eram vários tentáculos que se moviam involuntariamente.
- André! Abra essa porta! O que está acontecendo ai? Gritava o policial subalterno.
Olhos púrpuros. O corpo crescendo. Um gingante monstro gordo com vários tentáculos. Um alienígena. O imponente. O indefectível. O ser uno. Não-onipresente, porque quem o visse, jamais seria o mesmo, jamais conheceria na sua atormentada vida a palavra chamada razão; o substantivo ‘insanidade’ seria de todo inútil para designar o verdadeiro ser que viu o que nunca deveria ver, o que nunca deveria pronunciar e o que nunca deveria ter ouvido falar. O ser onipotente, pois ninguém era páreo para ele, nem mesmo os deuses que fantasiamos, todos eles são obliterados da nossa mente antes mesmo de nós os convocarmos.
Quando o policial subalterno arromba a porta e finalmente entra na sala, ele tem um grande sobressalto: André todo molhado, andando em círculos e gritando “O tédio a priori! O tédio a priori!”.
O policial tenta socorrê-lo, mas não teve tempo de impedir o derradeiro salto no escuro da piscina púrpura.