O prazer adicionado vagarosamente
O PRAZER ADICIONADO VAGAROSAMENTE
Uma injúria permanece irreparada, quando
o castigo alcança aquele que se vinga.
EDGAR ALLAN POE
As luzis noturnas confundem ainda mais a minha confusa visão. Confusa porque meu cérebro já não sabe mais o que quer enxergar. Minha cabeça lateja, aumentando cada vez mais a dor emitida pelo meu abalado sistema nervoso. A letargia do meu frágil corpo e a minha vista anuviada fazem meus sentidos atingirem um novo patamar: a visão em três dimensões. Olho para o relógio interno do carro, os quatros dígitos estão embaçados, mas, à duras penas, consigo ver que o primeiro dígito é o número dois, com isso tenho a razoável certeza de que já passa da meia noite.
Minhas mãos vibram no volante. Transpira todo o meu corpo, parecendo que eu surgi daquele contaminado, malcheiroso e excomungado rio. É árduo cada ar inalado, como se aqui a atmosfera fosse plenamente rarefeita, como se a cada dia passado, todas as mãos invisíveis desta cidade me estrangulassem vagarosamente. Lembra-te disso: vagarosamente!
Lembro-me de que estou a contornar o tal jardim da décima quinta letra do alfabeto, adentro o final da avenida dos cinqüenta... , avenida essa que deveria ainda está num eterno dilúvio por aquela gloriosa enchente de décadas passadas. Imagino a cidade perdida de Atlântida, à deriva por toda a amargurada eternidade, afogada por séculos e mais séculos. Que ninguém nunca a encontre!
Meu carro está fazendo ziguezague. A culpa é minha, o estúpido motorista que abalado mentalmente está. E que abalo... as emoções me devoram, o ódio por esta cidade e o prazer pelo sadismo para ser mais específico. Esses sentimentos crescem exponencialmente dentro de mim.
O motivo: aquela pessoa vil e adúltera. Mas o crime pela sua perfídia já foi muito bem pago. Eu fui o carrasco que deu o veredicto e executou a sentença. Contudo, ainda não estou satisfeito, meu prazer pela maldade multiforme ainda exige uma vítima, ou mais de uma. Aquele crime não pode se restringir à apenas um único ser. Mas como hei de encontrar um mísero inocente tão tarde da noite? Talvez a família daquele ser adúltero. Sim, que mente maravilhosa é essa minha. Sua família! Avante carro maldito! Que o hedonismo alumie o nosso trajeto.
Mas, o que é aquilo? Um desgraçado mendigo sentado na calçada! Isso é bom, talvez eu não tenha de ir muito longe para saciar esse enfermo encanto que domina todo meu corpo. Devo eliminar aquele marginal que daqui a alguns dias há subverter o meu centro, o centro que não interessa a mais ninguém. Dane-se o pós-moderno, tenho a certeza de que ele fará aquele marginal se transformar no novo centro. E eu, onde fico nesta história? Na marginalidade? Nem pensar, eu prefiro o sujeito de Descartes ao descentralizado freudiano.
Primeiro eu esmagarei aquele seu debilitado corpo e isto ainda nem se compara com a delícia de esmagar um inseto com os meus pés, porque o prazer será quadruplicado. Depois, se aquela alma desgraçada ainda estiver viva, hei de sufocá-lo com estas mãos trêmulas até que ele perca sua consciência, tudo na mais vagarosa paciência. Não sei o que fazer se ainda esvaído for a minha ânsia do hedonismo sádico, talvez numa sem procedente melancolia pela ilusão dum vero amore.
Avante carro maldito! Acelerar! Vamos estraçalhar aquele hexápode vil para a sociedade, de fato, um valoroso favor nós estamos a fazer para aquele próprio ser torturante. Menos um desgraçado e inútil verme. Eu deveria ser bem remunerado por isso, por cada inseto exterminado, a geral e real limpeza na semântica mais ampla dos enunciados. Considere-me o derradeiro inseticida para estas pestes devastadoras.
Avante carro maldito! Acelerar! A glória nos espera. Mas... os freios... não!... um enorme clarão... os quadros cubistas retocado pelos pós-modernistas...
Onde eu estou? Por quanto tempo a minha consciência me abandonou? Minha fronte está sangrando muito... Por quê? Minhas pernas estão presas nas ferragens deste maldito carro. Tenho que sair daqui, minha perna, doe muito. A ânsia de vomitar todo aquele jantar interminável... bléeeeeee... quão fétido estou eu... mas, que barulho foi esse?
Será que eu ao menos ceifei aquele hexápode? Oh, prefeitos malditos, remunere-me por isso. Fiz o seu trabalho, bem executado... mas o barulho continua ainda. Meu próprio sangue desliza até meus lábios, o gosto é bom, mas não nutritivo.
Ouço os faróis do meu carro se quebrando. Se não fosse minha perna, a tortura começaria imediatamente e... vagarosamente. Tenho que sair daqui, minha perna... vamos só um esforço, só um sacrifício...
Repentinamente, um enorme grito faz todos os vidros do meu carro se estilhaçar em muitos pedaços e três deles penetram facilmente no meu olho esquerdo. Além disso, um dos meus tímpanos é estourado pelo grito. A dor é algo soberbo, além do prazer em proporcionar, eu também sou afoito em senti-la. Mais dor para gerar mais dor!
Agora minha visão não mais está em três dimensões, mas em fiel reprodução daqueles quadros cubistas.
Eu incrivelmente consigo ver alguém abrindo a arruinada porta do meu carro. Quem será? Não pode ser aquele hexápode. Ele não sobreviveria àquele impacto. Não consigo ver quem é. Parece uma mulher... uma loira... noto marcas de sangue em seu pescoço... parece que ela foi degolada, mas ainda respira... não pode ser...
É aquele ser adúltero! Mas como? Seus olhos azuis fulguram intensamente e ela se aproxima de mim. Ela fica a 20 cm do meu rosto e tenta falar, mas o dilúvio de sangue nas suas cordas vocais a impede... mas ela tenta... tenta... e... finalmente consegue:
- Meu amor, eu o perdôo pela justiça feita por tuas próprias mãos. Mate-me centenas de vezes e a todas elas eu ainda continuarei a amá-lo. A aleivosia praticada por mim é que não tem perdão, rogo-lhe por clemência tua, meu amor. A minha fraqueza pós-moderna, a inexistência dos limites e o mundo que nos cerca; oh, amor da minha ceifada vida! Voltei do mundo dos mortos por ti.
Vejo lágrimas de sangue nascendo daqueles globos azuis, que se assemelha ao planeta terra depois do derretimento das calotas polares. Tudo azul, o infindável oceano. O vermelho líquido sentimental expelido por aquela mulher contrasta com o transparente líquido sentimental expelido por meus olhos.
- Que desgraça eu fiz! Como poderia eu matar um ser tão majestoso, tão magnífico? Por minha causa, tu rompeste com todas as leis do universo. Farei o mesmo por ti. Mate-me, por favor! Anseio estar no mesmo plano em que tu se encontras agora. Mate-me, meu insano amor. Um estúpido crime foi cometido por mim também. Tu não foste culpada, o mundo foi culpado, o pós-moderno foi culpado, esta sociedade dos valores ambíguos, todos eles foram culpados. A descontinuidade, o desmembramento, o deslocamento, a pluralidade, a descentralização, a indeterminação, o fenômeno da contrariedade, as diferenças múltiplas e provisórias, tudo isso subverte e abala minha vida. Não mais vontade tenho de aqui viver. A morte, dai-me este supremo prazer de estar ao seu lado. Mate-me vagarosamente, saboreai todo este meu maldito sangue, todo meu corpo lha pertence. A minha alma, ela não mais existe, pois não minha mais é, faça o que quiser com ela. Eu simplesmente não me importo mais. Apesar de tu seres um outro cultural, tu nunca foste um problema e nunca colocaste a minha conturbada identidade em xeque.
- Como fui capaz de trair uma pessoa tão delirante como ti? Nós estaremos condenados por toda uma eternidade, mas que toda esta punição seja paga ao seu lado. Uma última coisa ainda me intriga, por que tu tentaste matar aquele mísero mendigo? Ele era um mísero ser inocente.
- Meu amor, a era da inocência há muito já passou, cedeu lugar para a perdição existencial prolongada. O silêncio perdeu sua aura enigmática. Aquele hexápode morreu instantaneamente, melhor para ele, libertou-se logo deste lugar amaldiçoado. Fiz-lhe um enorme obséquio, acredito que ele pedia por isso. Agora me retribua um favor que tu me deves, mate-me vagarosamente. Anseio sentir cada centímetro de dor provocada por estas doces mãos. Deixe-me eternamente sem fôlego. Eis o prazer adicionado vagarosamente.
- Não preciso cometer outro crime, jamais teria coragem para isso.
- O que tu queres dizer com isso, amore?
- Pense um pouco, retome a tua razão. Como poderia eu tocá-lo, beija-lo e senti-lo dentro de mim, se eu não estivesse no mesmo plano em que tu se encontras agora? Quão jubilosa estou eu por este derradeiro momento. Sim, quase ia me esquecendo dum detalhe. O tal mendigo ainda vive, ainda respira este amaldiçoado ar que não há de nos sufocar jamais.
- Pior para ele.