O dia em que o céu caiu nas nossas cabeças
O DIA EM QUE O CÉU CAIU NAS NOSSAS CABEÇAS
...a vaidade é, com bem raras exceções, companheira inseparável da
beleza e onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha
mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo.
BERNARDO GUIMARÃES
São 5:55. 22 de junho de 2008. Domingo. Um momento raro e deveras especial. Abrem-se as cortinas das janelas, ao mesmo tempo, fecham-se as cortinas sobre a cidade e um grande espetáculo tem início. Uma peça com um ator principal e dois coadjuvantes: a intensa neblina, a cidade e o sol respectivamente. A cidade da pedra negra embaciada por aquele místico nevoeiro. Os incisivos ventos estão em coma, como sempre estiveram, entretanto, faz muito frio; o termômetro defronte ao exíguo shopping marca 16 C0. É incrível como o sol não ganhou papel de destaque nesta insigne peça, sendo um mero ator coadjuvante no tablado.
Nas ruas, nada se vê para além de 30 centímetros, nem as sombras dos poucos edifícios, nem o lixo que orna as avenidas, nem os entulhos da resignação parva e vil que estão dentro das casas. Quem andava pelas ruas naquele horário, sentia aquela neblina adentrando na alma, testando todos os sentidos, ofuscando ou embaçando todos os malditos espelhos, todos os carros, todas as indumentárias e todas as aparências, restando somente a essência.
Toda a cidade desaparecia. Talvez naquele dia, era esta a derradeira função daquela neblina: fazer desaparecer ou encobrir todas as desgraças visíveis que talavam aquela cidade. A saber: o fétido rio (que ainda continua fétido), a passividade atoleimada das pessoas, a mentalidade restrita e enclausurada em si mesmo (onde a evolução ainda é pungida pela soberana estupidez desta terra do fruto maldito), a hipocrisia acima de todas as coisas, a total carência da decência. Tudo isso estava ofuscado naquele horário especial.
Os celtas tinham toda razão em afirma que um dia o céu haveria de cair em nossas cabeças. Seriam poucos os que suportariam o peso de suas próprias consciências.
O tempo parecia estacionado: as horas demoravam uma eternidade, os relógios desapareciam na neblina, seus ponteiros estavam numa terrível indecisão, os sinos não sabiam para aonde se dobrariam.
Estava realmente frio, mas era um frio diferente, único, sublime e edificante. Já foi dito que o termômetro marcava 16 C0, contudo, naquele momento não se podia confiar naquela temperatura. Um frio que fazia as pessoas olharem para si mesmo, pois tudo que os circundavam, estava enturvado pela bruma.
É uma pena que aquele espetáculo se apresentava para os poucos transeuntes, para os pouquíssimos que abriam as suas janelas e para os poucos que tentavam guiar imprudentemente os seus carros. É mais lastimável ainda que aquele espetáculo fora compreendido por apenas um ator, justamente o protagonistas desta soberba peça: a neblina.
É importante salientar que em breve um desses atores há de morrer, dando a entender que a peça terá um caráter trágico. Outro ponto relevante é a inversão dos papeis, isto é, o sol e a cidade agora são os protagonistas da peça.
Sim. Agora todas as putrefações são visíveis. Somente a cidade e o sol se recordam daquele momento em que foram secundários. Todavia, quem é sempre ator principal, jamais deseja ser um mísero coadjuvante, jamais deseja se recordar do dia em que perdera sua importância, do dia em que fora ofuscado por outro ator, do dia em que fora usado como um mero pano de fundo.
Aquele majestoso momento dificilmente será lembrado.
Que sublime manhã!
O momento em que a cidade desapareceu.
O momento em que o céu caiu nas nossas cabeças e deixou pesada a nossa confusa consciência.