Waltz

WALTZ

Feliz daquele que no livro d’alma

Não tem folhas escritas

E nem saudade amarga, arrependida,

Nem lágrimas malditas!

ÁLVARES DE AZEVEDO

Era um dia em que eu estava enfastiado. Isso não era nenhuma novidade. Vivo num eterno lixo ideológico pseudo-introspectivo. Aquele triste vinho de natal. As velhas (tão velhas que chegam a me deprimir) questões discutidas com o velho. Ah, velho, deixe-me com os meus tédios e minhas crises profundas sobre os abismos. Tu sempre foste aquele tipo de pessoa que sempre aconselha com um sorriso de desdém oculto nos lábios. São decrépitos generais que sentem o prazer em enviar os seus soldados para um destino fatal e tão óbvio. Suas advertências vêm sempre acompanhadas com adagas escondidas nas entrelinhas dos teus chavões.

“Sempre é possível se elevar, sempre”. Como, meu velho? Numa cidade maldita que faz questão de se manter atrasada, onde a civilização se evolui (se é que posso usar mesmo este termo) às duras penas. “Temos de viver numa sociedade igualitária, onde os negros e os índios têm os meus direitos que os brancos”. Meu velho, não me venha com estes argumentos estapafúrdios de direitos iguais. E quanto ao mérito e a honra, haveremos de jogá-los na lata do lixo? Mato-me só de pensar numa sociedade onde todos somos iguais.

“Elevar-se”, mas para onde? “Atingir a plenitude do conhecimento”. E se tudo me for dado a conhecer, pergunto-me, e daí? Onde eu hei de ir depois de atingir tal estado de angústia? Como eu hei de analisar o contemporâneo se o canônico me arremessa para o fluxo infinito e penoso do universo? Velho, eu o culpo por isso. Tu e tuas conversas de “Elevar-se”.

“Elevar-se”, tal palavra me assolava quando estava eu a andar no corredor do meu recinto e me fez olhar para cima, para o sótão. Subi. Numa eterna procura pelos ventos perdidos, achei um conto em verso do velho. Olhando a estrutura, mais parecia uma epopéia, mas... meu velho! Tu não sabes a contagem métrica duma poema? Não se sabe se estavas a imitar Os Lusíadas ou Eneida, e se esta era a tua pretensão, paciência! Contudo, interessei-me por ler aquele conto de segunda categoria.

Ei-lo:

- Amaldiçoe essa clareza do olho soturno

Destes cobiçosos dos espaços vossos

Mais rápido devoraremos seus ossos

Suas carnes alimentam vosso taciturno

Espectro que vagueia ao sabor do vento

Princesa, certeza não tenho do meu intento

Começou bem, velho! Mas a falta de contagem métrica dói nos meus olhos. Nunca estudaste versificação? Não sei se estes podres versos estão em redondilha maior ou menor, heróicos, Alexandrinos etc. Bem, estamos a viver a pós-modernidade. Isso explica tudo. Vá lá:

- Com deveras sabedoria tu falas,

Mas esqueces de abordar o lugar

Daqueles crimes com várias caras

A boda não é inglês, mas vulgar

Olhe quão sem rumo eles andam

Nos torpes comércios que os assolam

A Waltz de Strauss dancemos nós

Flutuando nestes tristes vitrais onde

A lua cheia incide seus raios em vós

Ah, meu príncipe que veio de longe

Das frias terras da grande Germânia

Abrandemos na valsa a vossa insônia

- Oh, princesa minha, teus suaves

Dedos tocam diretamente na alma

Por ti, já atingi a derradeira calma

Plena dos seres voadores: as aves

E esqueces tu também de abordar

A hipocrisia mórbida que paira no ar

Que belas órbitas azuis suas

Mais naturais que esses vitrais

Veja ali, princesa minha, as tais

Fugazes e vis alegrias nas ruas

Quando as luzis são apagadas

Ficamos nós, almas agonizadas

- Esqueçamos tudo isso meu príncipe

Lembremos as valsas da Viena insigne

Quão pequeno é esse reduto da vaidade

Tão insignificante quanto à essência

A materialização da materialidade

Ah, Viena, fonte da minha existência

Por que fomos nós tão condenados

A padecer nesta prisão da matéria

Onde nada podemos tocar? Exilados

Estamos ao eterno tédio com a rédea

Do fado sempre justo e implacável

Viena! Minha eterna terra amável

Deixe-me ver se estou a entender. São dois fantasmas dançando valsa num shopping center, ou melhor, nesta mísera feira que dizem ser tal coisa? E tais fantasmas sentem saudades de Viena; e, ainda segundo consta, eles estão aprisionados a padecerem aqui por tempo indeterminado. Que loucura do velho e que azar deles! E tu que dizias amar este lugar acima de todas as coisas. Que dissimulação! Sigamos:

- Tua angústia faz muito sentido

Como faz! Mas veja o bom lado

Da moeda; suave foi este fado

Permitiu-nos que não fosse perdido

Aquele sentimento de eterno afeto

Amor é impossível num espectro?

Até quando ficaremos aqui exilados

Da nossa pátria amada, Áustria?

Eu, príncipe Franz Von Litzberg

Filho do grande país que se ergue

Oposto a esta terra de extirpados

Corpos pelo câncer da matéria

- Eu, princesa Liesl Von Litzberg

Filha do grande sol que se perde

Acho aqui uma vil segunda morte

Entregues ao fado e a triste sorte

Os nossos passos são calculados

Na valsa não há lugar para estouvados

Oh, ceife pela terceira vez esta vida

Aqui é um soturno beco sem saída

Somos meros espectros sem rumo

Nesta eterna valsa do consumo

Na dança desta elevada hipocrisia

Onde jamais haverá aquela poesia

Como? São dois príncipes austríacos condenados a passar uma pequena eternidade por estas terras? Que azar! Meus pêsames! Não tenho como conter o riso. Certo, certo. Continuemos:

- São arrogantes por terem tão pouco

São tão faceiros sem saberem ser

Não são como nós, não tem a nossa

Elegância, faltam-lhe a classe do ter

Não têm aquilo que se chama bossa

Distinta, a riqueza nos deixou louco

Excelentíssimos Senhores do Universo

Levem-nos para longe desse mundo perverso

Livrem-nos desta cidade do tédio eterno

Onde a negação da existência é fato certo

Onde a alegria é a falsa imagem no espelho

Estilhaçado num chão banhado em vermelho

Nesta parte o velho tem razão. Mas, acho que estou a perder o juízo. Logo tu, velho! Um patriota com flertes pela cultura germânica? Não entendo.

- Oh, meu austero príncipe luminoso

Dos meus olhos lírio tão insidioso

Finalmente superaremos esse plano

Nesse Hades extremo, vemos a luz

Infiltrando-me num devaneio insano

Ao centro do universo ela nos conduz

- Vamos minha princesa, sempre juntos

Aquela luz nos atrai, a única esperança

Cercados de novo seremos pela bonança

Isso é um adeus, adeus lar dos imundos!

Reduto da hipocrisia, da vaidade doentia

O consumo em demasia, a promessa vazia

- Sigamos em frente, adeus terra doente

Onde a ordem é inexistente, impotente

O lixo se propaga além dos seus valores

Suas vozes são polifonias dos horrores

Seus ecos se alastram na lira da ignorância

Ofuscar tal tolice é pior do que essa tolerância

- Chega de palavras, não olhe para trás

- Concordo, olhe estas lindas paisagens

- Três séculos se foram, mesmas miragens

- Os soberbos castelos, os coloridos vitrais

- Os belos pórticos, os fulvos castiçais

- Não veremos esses olhos de covas jamais

- Adeus, Adeus, pedra negra da vil virtude

- Adeus, rio fétido que os sentidos aturde

- Adeus, lixo da mais baixa civilização

- O tempo passa e o que se esvai é a salvação

- Seus anjos caem do céu, expurgados por Deus

- Adeus, até realmente nunca mais, adeus!

Velho, tu me enganaste. Um eterno defensor da África, “A África é o centro do mundo”. Não me faças rir. Desgraçado! Vá viver lá para sentir este gostinho de ser o centro do mundo.

Agora como tu me explicas estes perigosos versos? Pelo que eu entendi na tua escrita, tu defendes a Germânia com fervor. Explicai-me!

Percebo por que o verso estava escondido no sótão. Uma mera questão de status e de como assassinar a si mesmo. Hoje em dia é moda defender os oprimidos e se ganha muito dinheiro com isso, principalmente notoriedade. Mas, velho, e a tua essência? Eu sei, está na lata do lixo, assim como a teu mérito e a tua honra.

Somente agora eu entendo aquele teu verso. Tu és um mísero fantasma, vagando ao sabor da poeira, condenado para ser sempre visível. Teu putrefato corpo está aqui, mas a tua moribunda alma está na Germânia.

Desgraçado!

Ramon de Freitas Ribeiro
Enviado por Ramon de Freitas Ribeiro em 04/04/2010
Código do texto: T2176885
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