A Pedra Morta
A PEDRA MORTA
Nunca avaliamos a extensão do que fazemos aos outros.
Cada um de nós sabe por que sangra.
FRANÇOIS MAURIAC
O relógio em seu pulso marcava uma hora e vinte e três minutos. Naquele domingo vespertino, fazia muito calor na rodoviária de Salvador. O vento - quando ventava - contribuía ainda mais para elevar a temperatura daquela região devido à sua abrasadora lufada.
Ainda faltavam dezessete minutos para a partida do ônibus. Mas ela odiava esperar, a ansiedade era mais intensa. Então, resolve adentrar logo no transporte.
Amélia d'Ávila. Este era o seu nome. Filha de um presidente duma certa empresa de aviação em pleno declínio e duma certa médica de pouquíssima consideração na capital baiana. A opulência era-lhe indiferente, pois ela de nada sabia que futuramente muitas coisas de extrema importância iriam lhe faltar. Certamente!
Seu corpo esbelto nos faz deduzir que Amélia segue uma rígida dieta em contraste com a calórica e maléfica culinária daquela cidade. Estatura mediana e olhos castanhos claros. A pele era morena mais em decorrência do sol do que a própria cor natural. Longos cabelos pretos e lisos com intercaladas mechas loiras na fronte. Nariz curvado e minúsculas crateras na bochecha devido à acne. Por fim, grandes bustos.
A sua entrada triunfal e altiva no ônibus lhe dá uma aparência duma aristocrata insensível ao mundo que a cinge. E a arrogância era uma das suas inconstantes peculiaridades. Transparecia a evidente impaciência e a intransigência no seu semblante por ter sido obrigada a trocar a viagem de carro por este ônibus executivo. De fato, a Senhorita d'Ávila não queria ir à cidade destino neste transporte. A causa do seu atual estado emocional: uma habitual briga familiar, além da conjugal, o mais comum pelejo entre os sexos.
Aquele calor insuportável vai cedendo lugar para uma leve temperatura ambiente devido ao ar frio expelido pelo ônibus. Sua luxuosa mochila preta sintética é colocada despretensiosamente no espaço superior da sua poltrona. Ela senta e não se empertiga. A negligência! O tempo vai passando e ela espera. Espera...
Faltando cinco para a tão esperada partida, ela observa com desdém alguns passageiros (oito) procurando os seus respectivos assentos. O que ela mais almeja naquele momento é que ninguém sente ao seu lado. E ninguém senta.
O ônibus sai de Salvador, passa Simões Filho e segue o seu itinerário. Amélia ainda não consegue dormir. Destarte, resolve folhear o jornal que foi distribuído logo na partida do ônibus. A leitura não está na lista entre o seu passa-tempo favorito. Por isso, somente as notícias das mais banais possíveis lha interessa.
15:28. Cruz das Almas. Mais passageiros adentram o ônibus, o seu anseio ainda persiste. E é correspondido. Ninguém ainda teve a audácia de se sentar ao lado desta belíssima garota de 21 anos.
16:47. Santo Antônio de Jesus. Uma parada de quinze minutos. Ela não desce. Teve um leve impulso de colocar créditos em seu celular, mas preferiu fazer isso quando chegasse à cidade destino.
Finalmente Amélia consegue dormir. O tempo passa... Passa... Passa...
18:02. A chuva torrencial e as incipientes trevas noturnas açoitam o trajeto do ônibus. Ela sente que alguém está lha fazendo companhia durante a viagem. Todavia, o sono da jovem ainda é intenso e não se sabe quem é a pessoa ao lado.
18:21. A majestosa passageira é acorda com alguns respingos das chuvas que tiveram a ousadia de atravessarem a janela fechada. Lá fora o cenário era tenebroso e sombrio. Às vezes, as trevas eram alumiadas por constantes relâmpagos. O frio há muito subjugou aquele calor distante. Não há nada para se ver lá fora, apenas o começo dum dilúvio.
Então, passado muito tempo, a Senhorita d'Ávila tem a curiosidade de olhar quem era a pessoa que estava sentada ao seu lado. Um sobressalto! O estranho estava com o olhar tão concentrando nela, que era possível ver seus olhos negros através dos óculos escuros que ele usava, apesar da quase inexistente luminosidade do ônibus.
Amélia tenta se recompor, mas o estranho ainda está com o seu olhar cravado nela com uma fisionomia nada amistosa. Aparentava ser um senhor já de idade, cabelo grisalho, gordo, algumas rugas na face, sobrancelhas hirsutas e uma barba deveras sinistra. Ele vestia uma camisa social de cor bege e uma calça jeans.
Depois de três minutos, ela começa a se sentir incomodada com aquela inusitada cena. Era notório que a sua beleza despertava curiosidade misturada com segundas intenções (e esta jovem usava o artifício da beleza com brio), mas aquele velho já estava passando dos limites.
- Você deseja alguma coisa meu senhor? Perguntou Amélia sem nenhuma classe e educação, aliada a uma habitual impaciência. Não houve resposta.
- Oláaaaaaaaaaaa? A impaciência aumenta.
- Agora eu tenho certeza. Falou pela primeira vez o estranho. Sua voz era alta e gutural. Sinistro!
- Certeza de quê? Perguntou a jovem com a habitual repulsa àquele estranho.
- Escute primeiro. É uma curta e reveladora história. Você há de entender as entrelinhas e o desfecho será épico.
- Escute! Não estou nem um pouco interessada em ouvir essa tua história. Vai perturbar outra pessoa, vai? O desprezo da bela passageira para com o estranho aumenta ainda mais.
- Certo. Uma atitude típica. Custo a me acostumar com isso. A doença educacional que devasta esta sórdida terra, a qual já está enferma num estado aparentemente terminal. É por isso que até mesmo as pedras morrem minha cara jovem.
- Não estou com paciência para ouvir esses monólogos chatos. Tive um dia cheio. Cale-se! Esbraveja Amélia.
- Tudo começou quando a minha esposa deu luz a um belo menino...
A Senhorita d’Ávila suspira impacientemente, mas resolve ouvir pelo menos o início da narração do estranho. Afinal, ele parou de encará-la e isso já foi um grande alívio para ela. Aquele olhar lhe causava um enorme assombro. Ele continua:
- Desde a tenra idade, o meu filho se destacava na escola por sua inteligência, carisma e sensibilidade. Muitos o adoravam, principalmente minha esposa e eu. Ele era a essência do nosso viver, a semente que brotaria um soberbo fruto. E brotou. Sua educação foi bastante rígida, mas não fazia diferença, pois ele era mais rígido consigo mesmo do que nós. A sua grandeza não poderia ser compartilhada com mais ninguém. Eis o motivo de eu e minha esposa não termos mais filhos. Achamos que ele vingaria, honraria as nossas promessas e o nosso sacrifício. A sua glória futura estava tão óbvia...
O estranho tira os óculos escuros, suspira e enxuga com a camisa as lágrimas que brotavam dos seus olhos. Ele fica de perfil para Amélia.
- Acho que eu te conheço de algum lugar. Disse a belíssima jovem.
- No entanto, alguma coisa serviu de obstáculo para ele – uma maldita pedra, a tal pedra morta - e tal empecilho foi-lho fatal. Imagine que ele lutou com todas as suas forças contra aquele sentimento, mas sua vontade e força não se equipararam com a dificuldade, o tamanho e o peso daquela maldita pedra no caminho. Sim, havia uma pedra no meio do caminho...
- Dá pra você ir direto ao assunto ou está difícil? Indagou Amélia.
- Lembro-me que seu sonho era ser físico... astrofísico para ser mais preciso. Ah, meu filho, aquele jovem pálido e raquítico. O tamanho da sua grandeza era algo que meus olhos não alcançavam. Mas seus olhos, mesmo com os óculos de altíssimo grau, enxergavam muito longe, bem além das nossas órbitas, bem mais profundo do que os abismos e bem mais essencial do que muitos espíritos. Poucos o compreendiam e o seu valor não poderia ser de forma merecida reconhecido nesta ingrata terra. Ah, lastimo quão cruel foi aquela pedra que o amassou, reduzindo-o a um mero estado vegetativo. E quão duvidosa foi a sua atitude em abjurar a sua própria existência. A desgraça se completa na descoberta de que aquela maldita e execrável pedra é um ser vivo do sexo feminino. A desventura atingiu sua plenitude por meu filho não ter tido atentado para as questões das aviltantes paixões, aquelas que nos transformam em inúteis zumbis num cemitério das almas perdidamente apaixonadas. Que pedra abominável meu filho carregou por sofríveis dois anos. Que extraordinário controle aquela pedra morta tinha sobre meu garoto. Uma pedra amaldiçoada por Próspero. Uma maldição que ceifava a vítima numa questão de tão pouco tempo. Mas nem tudo é desventura. Essa pedra morta foi encontrada. Foi uma longa e desgastante busca. Contudo, eu a encontrei, num momento certo e na hora certa. Sim, ela está bem ao meu lado esquerdo. Que momento de puro prazer mórbido estou sentindo neste indescritível momento. Acho que você ainda tem a curiosidade de saber o nome do meu finado filho, não tem? Acho que não. A grandeza do seu nome não merece ser ouvida por seu principal algoz. E eu não permitirei que você pronuncie o nome dele, senão, as conseqüências serão muito piores do que as já planejadas.
- Eu sabia que eu me lembrava de você.
- E eu sabia que você lembrar-se-ia de mim.
- O que você quer de mim?
O assombro de Amélia transparecia em seu semblante e na sua trêmula voz, porque ela sabia perfeitamente quem era a pedra maldita. Sabia também a derradeira causa do suicídio do filho daquele não tão estranho senhor que sentava ao seu lado. Seu coração bate desordenadamente. E o pior, o estranho atacaria justamente por este vulnerável flanco.
- Está com medo Senhorita Amélia d’Ávila? Eis o nome maldito que por tanto tempo eu estava a procura. Você está tremendo deveras! Que bom! Isso muito me apraz. Mas ainda é só o belo começo do meu diabólico plano. VOCÊ foi a causa derradeira do suicídio leviano do meu filho. Você o ludibriou, machucou os seus sensibilíssimos e puríssimos sentimentos, levando-o, como conseqüência, a um maldito caminho sem volta: a morte. Meu jovem filho era um romântico exaltado e ele tinha uma paixão intensa por ti.
- Mas eu nunca gostei daquele horroroso ser. Não sei como eu fiquei com ele durante dois anos. Disse Amélia, tentando uma inútil esquiva. Era realmente inútil!
- É inútil você tentar se esquivar. E eu tenho a resposta para esta tua falsa dúvida. Você estava apenas interessada no pecúlio que a minha família proporcionar-lhe-ia. A tua família, pelo que eu sei, está em total ruína e é bem provável que caia ainda mais no precipício.
- Quem é você para falar assim? Onde está o cobrador desse ônibus? Sua companhia me desagrada. Cobrador! Cobrador! Bramiu a Senhorita D’Ávila. Ela se levanta da cadeira, mas uma cena impressionante acontece. Não havia ninguém no veículo, apenas ela e o seu principal verdugo. Além disso, o ônibus estava com um aspecto ainda mais aterrorizante: as trevas se intensificavam, as janelas se adornavam com um vermelho peculiar, as neblinas adentravam no corredor da condução e, por último, o frio machucava até a alma.
Com isso, o estranho dá uma risada assaz bestial que poderia ecoar por todo aquele maldito lugar.
Destarte, ele saca um bisturi e o indigita no olho da sua vítima indefesa. Sua fisionomia se assemelha a um sádico totalmente fora do controle.
- Saiba que eu arruinarei cada milímetro desta tua beleza condenada. Eu começarei sufocando-a até deixá-la inconsciente; arrancarei os teus olhos logo em seguida; escreverei o nome do meu filho na tua testa com este afiadíssimo bisturi; apunhalarei o teu coração infinitas vezes até o cansaço me vencer; cauterizarei teu nariz e os teus lábios carnudos para que você fique irreconhecível na autópsia da ignorância; cortarei este teus enormes seios, reduzindo-os a uma mera insignificância; por último, se você ainda estiver viva, eu farei você engolir todas as putrefatas iguarias que são servidas aqui, e se chegar a vomitar, não será pela boca, mas pelo teu ventre aberto.
- Por favor, pelo amor de Deus, não faça isso. Eu imploro. Eu fui muito falsa com teu filho. Você está certo, eu estava interessada pelo seu dinheiro... Eu o trai várias vezes... Eu magoei seus sentimentos... Desculpa... Não me mate, por favor...
Amélia desaba a chorar, no entanto, o carrasco é completamente insensível para com aquele tardio arrependimento.
- Isso mesmo! Implore por esta tua abominável vida. Seu ser desprezível! Bem, não percamos tempo. Vamos começar a tortura. Primeiro, deixe-me sufocá-la...
O tempo passa... Passa... Passa... E nós esperamos... O visgo aumenta o seu poder de absorção... Estamos eternamente presos...
20:10. Aurelino Leal - Ubaitaba. Amélia acorda sobressaltada e arfante. Ela olha para o lado e percebe uma senhora com ósculos escuros olhando-a tão intensamente que era possível ver os seus olhos escuros, apesar da pouca luminosidade do ônibus. Esta senhora saca um bisturi e o aponta para o pescoço da atormentada jovem e a ameaça com uma voz aterrorizante:
- Agora eu tenho certeza. Deixe-me contar uma curta e reveladora história. Você há de entender as entrelinhas e o desfecho será épico. Tudo começou quando eu dei luz a um belo menino...
- Não!... Não! Socorro!... Alguém me ajude...
Não houve ajuda. Apenas o peso da consciência esmagando-a até reduzi-la a um mero estado vegetativo.
Afinal, as pedras também morrem!