O Redemoinho na estranha casa do Dr. Viera-Cluster

O REDEMOINHO NA ESTRANHA CASA DO Dr. VIERA-CLUSTER

...em torno da mansão e suas adjacências, uma

atmosfera peculiar, que nada tinha em comum

com ar dos céus, mas que emanava das árvores

apodrecidas, das paredes cinzentas e do lago

silencioso – um vapor pestilento e místico, opaco,

pesado, mal discernível, cor de chumbo.

EDGAR ALLAN POE

É de praxe aquele calor infernal. Deveras, o Hades se encontra naquela terra, aquela pedra negra maldita. A concentração cede lugar para a nobre espera duma suave brisa. O solo, composto dum asfalto pessimamente pavimentado, são as larvas incandescentes que nos consomem a cada passo dado.

É justamente esse caminho que a doutoranda em genética Maira Silva (que sobrenome...) frequentemente deve trilhar. Antes disso, ela atravessa a vacilante ponte e sobe várias ladeiras com muitas curvas. O único consolo são as belas casas que a ladeiam, algumas com arquiteturas bastante simbólicas. Perpassa também um famoso colégio e segue subindo mais elevações curvilíneas.

Finalmente, ela encontra o seu destino: a estranha casa do Dr. Veira-Cluster (a respeito deste último sobrenome, o doutor exige que ele seja pronunciado britanicamente, ou seja, “kl’Λsta:”). O tal recinto se localiza já final do bairro aristocrático, pois daquele cume pode-se ver as sobras que a civilização duvidosamente desprezou.

O que se pode obviamente observar nesta casa é que ela foi quase completamente invadida pelas vegetações. A natureza nada perdoa, principalmente se a obra for construída pelas mãos do homem; porque, sendo assim, é incrementado o prazer doentio de devastar ou ocultar o concreto, seja ele esculpido com esmero por um verdadeiro artista ou com a negligência das sobras indigestas.

Atualmente, o recinto propriamente dito se localizava deliberadamente no meio duma densa vegetação dum aspecto sombrio, com imponentes árvores nuas e com um aspecto extremamente ameaçador. A única trilha pavimentada que levava até a casa está praticamente coberta por matos. Há cheiro de urubus mortos, alguns até descarnados e pendurados nos galhos daquelas árvores. O estranho é que existe sempre uma nuvem negra que nunca se consome acima da casa. Quando raramente - para a felicidade de poucos afortunados - despenca uma borrasca naquela tenebrosa região, a estranha casa do doutor nunca é afetada, como se ali já houvesse uma tormenta personalizada.

Todo esse cenário excêntrico contrasta com a beleza escandinava da estonteante Senhorita Maira – longos cabelos loiros e lisos, pernas torneadas, estatura alta e olhos verdes. Ela estava já no final do doutorado em genética e ocasionalmente fazia todo aquele percurso para pedir ajuda ao Dr. Viera-Cluster.

A belíssima jovem atravessa a quase inexistente trilha até a casa, mas antes de atingi-la, ela nota no final da trilha um estranho machado fincado no chão. Não obstante, ela ignora tal fato, pois concentra a sua percepção no doutor tocando pessimamente o seu violino. Talvez alguma peça veloz do compositor e violinista italiano Niccolò Paganini. Se realmente isso fosse, este estaria agora se agonizando no túmulo. Está lacrado internamente o enorme portão de aço, com algumas enferrujadas birras em forma de losango. Não havia campainha, então:

- Doutor Viera-Cluster! Sou eu, Maira, sua discípula.

Cessa o barulho do violino. Um minuto se passa e uma figura fantasmagórica assoma na janela empoeirada. Mais um minuto se passa e atrás da porta ouve-se a algazarra de vários trincos sendo destravados. O paraíso perdido é aberto.

Tanto no exterior quanto no interior da fúnebre e abandonada casa, as paredes estavam desgastadas pela umidade e pela infiltração, chegando ao extremo de não se saber qual cor ali antes existia. Apesar do calor lá fora, dentro da casa fazia aquele frio macabro e inexplicável, pois não havia nenhuma ventilação tanto externa quanto internamente. A pouca luminosidade advinha dum candelabro com poucas velas acesas na orla esquerda. O chão era forrado desordenadamente por poucos tamancos de madeiras de sucupira, que ainda adornavam o local onde os pés de Maira tocavam. Quanto aos móveis, havia poucos e os que se encontravam por ali já estavam arruinados pelo tempo; alguns até mesmo enterrados por ele.

A doutoranda sobe uma escada escorregadia devido ao limo. Nas suas laterais ela observa enormes teias de aranhas com suas bifurcações para todos os lados; uma enorme e negra tarântula flutuava indiferente e tranqüilamente neste encadeamento de frágeis linhas. É uma curta e inusitada via para algo longo e desesperador que é o conhecimento buscado em excesso. Aliado a isso, com a plena certeza nós vemos a loucura e a moléstia como ornato. O exemplo está copiosamente nítido aos nossos olhos bem treinados.

Maira termina de subir a escadaria e se depara com uma enorme câmara. Apesar do escuro, ela nota à esquerda um estudo detalhado da anatomia e da genética dos urubus com seus corpos expostos. Dessa forma, não temos a certeza sobre quem é mais insalubre: se são as bactérias que saem daquela fétida e negra ave ou se são as invisíveis bactérias que cercam aquela loira.

À direita encontra-se uma grandiosa estante de livros devoradas pelas traças e tragadas pela poeira.

Bem no meio, sentando numa poltrona, encontrava-se o Doutor Viera-Cluster. Como já foi dito, a câmara estava na imersa escuridão, por isso, a estudante via apenas a silhueta do seu mestre, que aparentemente olhava para o imperdoável mundo lá fora.

- Doutor, porque não acende as velas? Posso me encarregar disso? Sugeriu Maira.

- Faça isso! Mas que paradoxo! Eu necessito do escuto para me encontrar e você precisa da luz para chegar ao clímax do conhecimento. Estamos a trilhar caminhos absurdamente discrepantes minha bela jovem.

A voz do Doutor Viera-Cluster era bem pausada e cansada, parecendo que ele pensava em cada vírgula que iria proferir. Em acréscimo a isso, ele tossia amiúde.

- Estamos nisso juntos Doutor. Não importa a discrepância das nossas vias, estamos a atingir um mesmo patamar.

- Sim, o patamar da loucura e da desilusão. Que inutilidade!

Maira não dá muita atenção às divagações do seu anfitrião, pois ela estava tentando acender as três velas restantes do candelabro. Todavia, apenas as duas velas de ambas as extremidades são acesas. Com isso, as sombras que elas formaram na arruinada parede, junto com a sombra da cabeça do Dr. Viera-Cluster, dão a esse último uma aparência dum ser maligno, muito presente na vaga literatura evangélica.

São as seqüelas de estudos ininterruptos; experiências mortais e desnecessárias com aquelas podres aves negras, não que elas não merecessem algo pior do que aquilo, mas o denominador comum não foi um resultado exato, único e lógico, foi algo similar às experiências dos médicos nazistas; o resultado foi a perda dos anos passados inalando a poeira dos papéis dos conhecimentos; a perda da juventude e das fúteis e efêmeras paixões, não que isso fosse realmente uma perda lastimosa; a sociedade o colocou no total ostracismo, não que isso também fosse um mau negócio, contudo, o Doutor tinha um desejo mórbido de prestar contas àquela sociedade do fruto maldito, como se isso fosse valer a pena. E realmente não valia, porque a atitude daquela sociedade vai de encontro ao verdadeiro e imutável conceito de sociedade, aquela que valoriza os gênios e os sábios que nela vivem. Enfim, o que sobrou? As sobras dum ser que se apraz no escuro, nas trevas personalizadas por ele mesmo.

- Doutor, deixe-me ver o seu rosto.

- Sente prazer em ver um cadáver, mademoiselle Maira?

- Não.

- Depois de tanto tempo em companhia de centenas deles, acabei virando um. Minha bela jovem, eu não tenho mais nada para lhe ensinar. Amaldiçoe e me processe por isso. Depois tanto tempo sem ver o fulgor das estrelas, acabei me afogando no abismo das densas sombras. Elas me atormentam mademoiselle e poderão atormentá-las também. Eu não tenho mais nada para lhe ensinar, pois tudo o que eu tinha dentro de mim, veio dos livros e eles já foram consumidos pelo tempo. Veja o meu estado para constatar isso. Por que você ainda vem me visitar? Eu, um cadáver ambulante que ainda tem a ousadia de respirar. Por que você ainda está aqui? Deixe-me neste mórbido ostracismo, eu mereço tudo isso, pois o resultado dos meus estudos foi as centenas de defuntos abertos por puro enlevo. Deixe-me apodrecer sozinho, não quero este mesmo fado para você. Por que aqui ainda estás? Responda!

A belíssima e apetitosa jovem – que vestia uma calça jeans justíssima, mostrando as perfeitas curvas de suas pernas - ergue o candelabro e o aproxima do seu mestre. A luz revela um rosto lívido e sofrível, cabelos e barbas fluviais e longas, pálpebras roxas e encarquilhadas, corpo esguio, cujo terno marrom que o cobria, estava bastante avariado.

- Hoje eu não vim absorver seus inestimáveis conhecimentos Doutor. Muito pelo contrário, vim especialmente para livrá-lo deles. Doutor Viera-Cluster! Está mais do que na hora de conhecer e enfrentar o novo mundo lá fora, o mundo que fez questão de apagá-lo. Está na hora de obliterar aquele fruto maldito e os seus conhecimentos serão de uma utilidade magnífica. Venha doutor! Vamos enfrentar juntos aquela sociedade das aparências. Acorde para o verdadeiro significado da vida: a luta e a boa morte. A hora é essa! A hora de ver a luz! Mais luz para brilhar mais luz!

Subitamente, várias sombras começam a rodear aquelas duas pessoas, numa dança totalmente incompreensível; o chão treme com os tamancos de madeira saltando amiúde; o fogo das velas se intensifica e cospem suas chamas para aqueles dois corpos, atingindo a mão esquerda de Maira; as janelas têm seus vidros estilhaçados em inúmeros pedaços; o teto começa a desabar e o frio aumenta ainda mais.

A jovem ergue com facilidade o corpo frágil do Doutor e o carrega até a escadaria. Antes disso, mais uma rajada de chama é lançada pelo candelabro, só que desta vez, Maira se esquiva, tirando o Doutor da linha de mira do enigmático fogo e dando um rolamento para o lado esquerdo logo em seguida. Ela encontra um grande tubo de ensaio contendo o sangue fétido de urubu e o lança na direção do candelabro. Assim, o fogo se extingue. O teto cospe um de seus concretos no Doutor, atingindo a sua cabeça e deixando-o inconsciente. Maira rapidamente coloca-o em sua espádua e leva consigo também o tal candelabro.

Eles atingem a escadaria, onde a enorme tarântula os espera. O aracnídeo ataca primeiro, lançando teias nas suas vítimas. A jovem apara o ataque com o tal castiçal. Logo em seguida, ela estoca a aranha com o tal objeto empunhado com a sua mão direita. Foi incrível a força que Maira colocou no golpe, pois facilmente o artefato penetrou no corpo viscoso do aracnídeo.

Chegando ao térreo da casa, o chão se transforma numa enorme areia movediça que parecia ter a ânsia de engolir todo aquele recinto, numa fome canibalesca. Entretanto, a apetitosa garota não teme o perigo e salta - com todo o vigor e agilidade da sua juventude – nos móveis tragados pelo tempo.

Finalmente, eles conseguem sair da casa, no entanto, mais obstáculos os esperavam. Eram os tais cadáveres das aves negras e as assustadoras árvores. Os urubus - em número de cinco - atacam primeiro, tentando morder a jovem de beleza escandinava. Ela se esquiva de todos eles. Então Maira se lembra do tal machado fincado na terra. Ela o apanha e, com ele na sua mão direita, dilacera as aves numa notável fúria e coragem. Vale ressaltar que o corpo do Doutor ainda estava nos seus ombros.

Após destroçar os urubus, as descarnadas árvores ganham vida. Elas tentam enlaçar com seus galhos aquela loira guerreira. Todavia, Maira é mais ágil e rápida, ela toma a dianteira e pôs-se a correr numa velocidade maior do que as das árvores.

Por fim, ela consegue sair da densa vegetação. Então, algo de muito inusitado acontece: toda a estranha casa começa a naufragar num redemoinho maldito. Nada escapa, como se nada nesse mundo pudéssemos levar conosco no momento da derradeira morte. A terra a tudo engole: a densa vegetação, as nuas árvores, o estranho recinto e até mesmo aquela personalizada nuvem negra que nunca se consumia no firmamento. O cenário muda de formato, o que resta agora são uma densa poeira e uma extensão de terra morta muito menos tenebrosa do que aquele mortífero e fétido cerrado.

Maira está arfante e suando muito, todos os seus músculos doem, seu coração dá violentas pancadas em seu grande busto. Apesar do extremo cansaço, a belle femme quase não sente o peso do corpo que carregava nos seus fortes ombros. Na verdade, ela quase não se lembrava de que transportava um.

Maira deita o corpo do Doutor Viera-Cluster no chão. Um enorme sobressalto ela sofre: o que restou daquela fisionomia apática do Doutor foi apenas o formato descarnado do seu crânio, com algumas poucas mechas de cabelo branco. Mas isso não impede a jovem de beijá-lo e acaricia-lo intensamente, numa espécie de paixão mórbida - no sentido amplo da palavra - por aqueles ossos que estava em suas mãos.

- Pobre Dr. Viera-Cluster! Como eu o amava deveras. O tempo não me deixou nem expressar tal sentimento. O tempo pode ter levado quase tudo de você, meu amor, mas em compensação ele deixou em mim as suas marcas profundas.

Quando foi relatado que o redemoinho a tudo levou consigo, é importante lembrar que não houve exceção à regra.

Ramon de Freitas Ribeiro
Enviado por Ramon de Freitas Ribeiro em 02/04/2010
Código do texto: T2173480
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.