No fim do mundo
NO FIM DO MUNDO
Pegou numa pistola e entre fumaças
De saboroso – Havana – à eternidade
Foi ver se divertia-se um momento.
FAGUNDES VARELA
Fleuma: características dadas às pessoas que mantém um controle emocional extraordinário mesmo em situações adversas.
Nalguma sórdida e esquecida cidade, sete jovens sentem a densa curiosidade de explorar uma fazenda abandonada, a qual se situava perto do que eles incrivelmente chamavam de aeroporto. Ali se encontrava um casarão em frente a um rio que ilusoriamente despencava da cachoeira, por isso, Rio Cachoeira. Muitos afirmam que aquela imponente casa já fora o centro daquele Bairro que muitos designam como “O Iraque”. As razões para tal estigma são deveras óbvias.
A tal casa grande tinha uma arquitetura que lembrava os primeiros anos de fundação da dita cidade. Segundo consta na entrada do recinto, a sua data de construção assinalava 12 de outubro de 1925, cujo sobrenome do dono refere-se a um tipo conhecido de árvore, bastando apenas o acréscimo do sufixo “eiro”.
Há um tempo atrás, a habitação ficava isolada entre algumas pequenas elevações de vegetação forçadamente rasteira, dando-lhe certo destaque e aumentado ainda mais o mistério acerca dela. Mas atualmente, construíram desordenadamente minúsculos e horríveis casebres ao seu redor. A belle paisagem campestre cede espaço para a detratora paisagem urbana.
Os adolescentes decidiram explorar a casa à noite, pois eles souberam que os dois vigias, mal pagos pela caótica prefeitura, não estariam de vigília naquele horário.
Para chegar ao tão desejado destino, eles teriam de passar primeiro pelo “Iraque”. Feito isso, vem a pior parte: subir a má pavimentada rua dos aglomerados casebres. O cheiro era fétido, matos não encontravam resistência para invadir as ruas, por último, fazia muito calor. Um dos adolescentes interrompe a marcha, contempla as constelações e argumenta “Dizem que há um ser bestial lá naquela casa. Além disso, quem entra nela, será eternamente devorado pelo visgo ali contido. Desisto. Boa sorte para vocês! Estou livre! Até nunca mais!”.
Os seis que sobraram decidiram seguir em frente com o plano. “Dá pra seguir em frente ou está difícil?”, dizia um deles. Subiram uma escadaria e se depararam com o dito recinto. Era uma hora da manhã num de seus relógios. As íngremes ruas dos casebres estavam desertas e a escuridão reinava absoluta.
Havia uma despida e diabólica árvore a qual escondia parcialmente a casa. Logo ao lado esquerdo, encontrava-se uma porta de ferro fechada com um cadeado já enferrujado. No meio, uma porta lacrada com madeiras já podres.
O momento de acender a poderosa lanterna havia chegado. Uma intensa rajada de luz é lançada para o andar de cima. Surpreendentemente, uma sombra se esquiva da forte claridade numa velocidade extraordinária.
- Vocês viram aquilo?
- Sim, será que há nativos nesta casa?
- Deve ser o herói desistente querendo nos assustar.
- Ou alguém usando drogas.
- Ou algum casal fazendo cenas explícitas.
- Calem a boca! Vamos seguir em frente ou está difícil?
Os seis resolvem subir uma pequena escadaria em espiral. Mais para a direita, encontrava-se uma espaçosa chácara com uma fechada vegetação. O que estava segurando a lanterna alumia alguns arbustos e percebe dois olhos vermelhos ocultos na envolvente escuridão.
- Olhem aquilo! Olhem! Duas rubras luzes!
- Onde? Onde?
- Estranho! Não estão mais ali. Mas estavam ali.
- Dá pra vocês continuarem a subir ou está difícil?
Os jovens sobem a escada e se deparam com uma varanda. Havia dois caminhos a seguir: um à direita deles, com um médio corredor; e outro que seguia em frente, com uma porta que se localizava no centro e, passando por ela, um caminho curvava para a direita.
- Vamos nos dividir.
- Mas só temos uma lanterna.
- A luz do meu celular é forte. Tome emprestado. Vamos fazer o seguinte: nós quatro vamos seguir em frente, enquanto vocês dois bifurcam pela direita. De acordo?
- De acordo.
Os dois que pegaram o caminho da direita estavam iluminando o escuro com a luz do celular. No entanto, um deles percebe pequenos rastros de sangue pelo chão, misturada com um visgo. E eram recentes pelo que consta. Essa trilha levava a uma porta aberta já desgastada pelo tempo. Adentrando, percebe-se que o piso muda de configuração: de uma velha cerâmica para uma dúbia madeira de sucupira.
De súbito, o chão cede e um deles cai no andar de baixo. Era justamente o que estava segurando o celular.
- Você está bem?
- Sim, só um arranhão no braço. Mas o fedor de mofo aqui embaixo está insuportável. Consegue vê alguma coisa ai de cima?
- Erga o seu celular, está um breu total aqui, pois mal consigo enxergar a luz do seu celular. Escuridão completa!
- O que é aquilo atrás de você? Cuidado!
Apenas sangues dos miseráveis, daqueles que estão bem abaixo, ou seja, da cidade deslembrada. Um alívio para a natureza, dois espaços a menos, dois detritos a menos, mais água potável para os pássaros, as baleias reverenciarão a calmaria dos mares profundos, finalmente, o universo agradece.
De repente, um grunhido de fúria que causa medo até o mais fleumático ser humano ecoa até aos extremos da rosa dos ventos.
- Espero que não tenha sido o meu triste estômago assolado pela acidez da embriagues alimentícia regional.
- Acho que foi o acordar agonizante da velha. Ela padece a cada novo brilho da aurora. A verdadeira noite nunca acontece aqui.
- Vocês dois estão completamente errados em seus discernimentos. Aquilo foi a risada maligna e hipócrita do velho. Ele sofre com inconstância necessária da vida. O passado ainda o assombra, o presente o deixa sem voz e o futuro o enterra.
- Calem a boca! Escutem, é imperativo que nós entremos por esta porta aqui do meio. Passe-me a gazua.
Eles arrombam a porta e adentram finalmente a casa. O cheiro peculiar das fezes, dos mofos e das urinas assola as narinas dos jovens incautos. Um abandono completo.
Repentinamente, a porta atrás deles se fecha sozinha com um enorme estrondo. A casa agora parece ter vida própria. As paredes propositadamente zombam daquele insensível silêncio. O calor aumenta. Os visgos orvalham do teto. E a tragédia ainda se mantém.
Logo em frente, havia três bifurcações com respectivas portas abertas: esquerda, meio e direita. A do meio fora o escolhido por três jovens, mas:
- Cavalheiros, sinto que eu encontrarei meu destino no escuro do lado esquerdo. Alguma coisa me atrai para aquele lado. Minha viagem acaba por aqui. Au revoir.
O mancebo só esquecera de mencionar que seu destino seria a extirpação do seu próprio fígado e o dilúvio de sangue para todos os extremos, inclusive na direção dos três remanescestes da resistência.
- Ao menos um banho, mesmo que o líquido seja viscoso e corado... bem, isso não o invalida. Afirma um deles.
Eles passam pelo caminho do meio e se encontram numa ante-sala de extrema viscosidade. A ausência de móveis era total e no flanco direito faltavam telhas na parte superior.
- Acho que estou preso. Uma espécie de visgo... Não sei ao certo... Um aroma... Um fruto geóide. Um glorioso futuro me aguarda aqui. Estou rico, a opulência me aguarda.
- Não enxergo tal futuro, mas até que gostaria. Acredito que minha visão esteja anuviada por este líquido vermelho e pelo certificado da minha ignorância. Não podemos fazer nada por você. Nunca podemos. Fique você com a sua ilusória opulência, excelentíssimo cavalheiro. Bis bald.
- Sigamos em frente ou está difícil?
Após perpassarem a ante-sala, nota-se uma divisória de ouro, a qual preparava a entrada para um enorme salão dourado. Mais além, vê-se uma escada desgastada e totalmente insegura, ou seja, o caminho para emergir estava aparentemente bloqueado. A insalubridade aumenta. Um grito de dor é ouvido bem detrás dos dois jovens, mas insensivelmente eles seguem em frente e nem ao menos olham para trás.
Então, algo esdrúxulo acontece: roupas, jóias, braceletes, metais preciosos e colares flutuam aleatoriamente pela sala dourada.
- Cavalheiro, só consigo enxerga as suas lustrosas e vistosas roupas. Não consigo vê-lo. Onde você está?
- Bem na tua frente. Confesso-lhe que me sinto sufocado com tantas escolhas e poucos recursos. Pode seguir em frente. Por aqui hei de ficar. Eu e as indecisões, eu e as aparências.
- Tudo bem. Seguirei em frente. Farewell Sir.
Mas para onde ele iria? Todas as portas agora fechadas estavam. O ar lhe faltava aos pulmões. A forte luz da lanterna fora vencida pelas trevas. Seu corpo cheirava a fezes, urina e sangue. Seus pés estavam presos por densos visgos daquele fruto maldito. Se até mesmo as fortes luzes foram vencidas, imaginem as luzes insignificantes. Ir para onde? Não há mais escolhas, a razão se esvai, tudo tende a desmoronar e tudo ficará no mais completo abandono. É muito melhor morrer de tanto trabalhar lá fora do que morrer de tédio por aqui. É melhor ainda o constante agito das capitais do que a ilusória paz que muitos dizem encontrar por aqui.
É de grande mister admitir: aqui é o fim do mundo.
O único que escapou dessa eterna condenação foi aquele que disse “Boa sorte para vocês, estou livre e até nunca mais”.