A Torre de Davi

(Sala)

- Do que você lembra?

- Do meu reflexo.

- De mais nada?

- Tudo parece pequeno pra mim.

- Como assim?

- Minhas mãos... Essa sala... Você.

- Eu sou pequeno?

- É... Como se fosse. Não sei explicar direito. Lembrei de outra coisa.

- Diga Davi.

- Lembro de uma conversa que tive com meu melhor amigo.

- Você que contar pra mim qual foi?

- Sim...

(Praia)

-Ei! Olhe!

- Nossa, são muitos! Devem estar migrando.

- O que me impede de voar?

- A física, Davi.

- Mas o que me impede mesmo de voar?

- Você não ter asas?

- Ora cara, pense... O que me impede de voar?

- Bem... Pensando claramente, nada.

- É isso... E o que me impede de atravessar o oceano correndo?

- Acho que a falta de loucura. Ei! Espere, aonde vai?

- Atravessar o oceano!

(Sala)

- Sabe doutor... Eu aprendi uma coisa sozinho uma vez.

- E o que foi?

- A verdade é como uma garrafa com uma mensagem dentro viajando pelo mar. Um dia alguém a encontrará e lerá sua mensagem.

- Mas talvez ninguém a encontre.

- E como o senhor sabe?

- Bem... O mar é imenso. As chances de essa garrafa aparecer em algum lugar aonde existam pessoas é remota.

- Quantos anos o senhor tem?

- 44.

- O senhor sabe quanto tempo ainda existirá pessoas nesse mundo?

- Não. Eu não sei.

- E quanto tempo ainda existirá o mar?

- Não.

- E a garrafa?

- Bem menos do que as pessoas e o mar.

- E a mensagem dentro?

- Muito menos ainda.

- E a verdade?

- E o que é verdade Davi?

- Eu sei o que é verdade. E o senhor também saberá. Um dia...

(Praia)

- Ei! Espere, aonde vai?

- Atravessar o oceano!

Senti minhas pernas afundarem a cada passo e o meu corpo a sucumbir pelas ondas fortes. Os meus olhos já estavam ao nível da superfície e o chão não mais podia sentir. Na situação em que me encontrava o único jeito era deixar o mar me levar. Mas meu amigo estava em outra situação e me puxou pelo braço meio estendido e quase invisível pela água salgada. O sal era intenso. Meus olhos arderiam se eu os abrisse enquanto meu amigo me arrastava para a beira. Eu pude então apenas ouvir seus gritos de repreensão.

- No que você tava pensando? No que você tava... Quase morreu. Quase! - Enfim criei coragem e abri meus olhos.

- Desculpe.

- Não interessa. Vamos embora.

Ele era minha razão. Eu sempre soube disso. Eu era seu coração como dizem os poetas, mas ele nunca soube disso.

Quando eu cheguei em casa,vi minha mãe sentada na cozinha com a cabeça abaixada por cima dos braços cruzados sobre a mesa.

Acho que ela não me viu chegando. Mas tive que perguntar.

- O que houve mãe?

- Filho você chegou! Como foi a praia?

- Respondo quando a senhora me disser por que está debruçada assim sobra a mesa.

- Ah, não é nada. Só estou com uma dorzinha de cabeça.

- Ainda não vou responder.

- Filho, Só estava pensado de como tudo aconteceu na minha vida, do que me levou a chegar aqui, com algumas tristezas e outras alegrias, porque nem sempre conseguimos ficar de cabeça erguida. As vezes afundamos no nosso passado e reclamamos do que poderia ter sido diferente. Mas não se preocupe. Eu estou bem. Agora me diga como foi.

- Foi bom, também afundei no meu passado. - Disse sorrindo para ela.

Nos meu quarto, fiquei pensado no que tinha feito. Por que tenho limites? Por que não posso simplesmente fazer algo totalmente diferente e inexplicável? Mas eis a resposta para a questão: “Eu posso!”, mas... Como?

Naquela mesma noite, acordei sentindo uma mão batendo em meu ombro.

- Davi! Davi! – Sussurrava uma voz já conhecida.

- Ãh?...o que, Diego?

- Sim... Quem mais poderia ser?

- O que você faz aqui? Com... Como você entrou na casa?

- Te explico no caminho. Temos que ir.

- Ir aonde? São duas da manhã.

- Desta vez vai funcionar Davi.

- O que vai funcionar?

- O que você quiser.

Mesmo com muito sono, e não entendendo as lúcidas razões conhecidas para ser acordado por meu amigo no meio da noite, saímos sorrateiramente de meu quarto para não acordar ninguém. Lá fora estava seu carro, um Chevette cinza ano 81. Ele entrou enquanto eu fechava o portão. Depois foi minha vez e como sempre ao bater aquela porta velha acabei exagerando na força. Quando já esperava ouvir um “mais que droga cara! Bate devagar!” - como sempre dizia o meu enciumado amigo por seu carro, acabei ouvindo um “ oi ” - Vindo do banco de trás.

- Uoou! Que é isso cara? – Eu disse despertando completamente do sono após bater minha cabeça no teto do carro.

- Davi, tudo é sua culpa. – Disse Diego.

- Do que você ta falando cara? E quem é esse?

- Esse é o diabo.

Antes de eu dizer qualquer palavra, Diego acelerou. E nós corríamos mais rápidos a cada segundo. Ele não tirava o pé nem um instante.

- Ei! Ei! Pára cara! Devagar! Diego! Deixa de brincadeira cara!

A velocidade aumentava e pela janela só conseguia ver vultos. Ao olhar para o lado, Diego estava com as mãos para o alto olhando para frente. Estávamos à mercê de uma direção sem controle.

- Po... Por que você ta fazendo isso cara? Não precisa fazer isso. – Dizia eu quase chorando em desespero.

Quase um quilometro a frente, eu já podia ver um muro. E nada indicava que o nosso destino fosse mudar.

Diego continuava de braços erguidos, mas dessa vez olhava pra mim. Foi então que subitamente tentei segurar o volante, mas como resposta, fui puxado para o banco e meu pescoço envolvido pelos dois braços do suposto diabo. Estava ficando sem ar. Estava sendo sufocado. Meu olhar fitava Diego sem entendê-lo e se voltava para o muro que se aproximava. Minha visão já estava turva e já não sabia se iria morrer sufocado ou estraçalhado e o que importava agora!

Na última vez em que olhei para Diego já não o via com clareza, mas o ouvi. Ouvi nitidamente o seu grito alto e persuasivo: “Deseje!”

O carro apagou subitamente. Tudo desligou. Motor, faróis, painel... Tudo. Sem explicação tudo travou e o carro freou violentamente.

Ficamos parados ali alguns segundos. As mãos daquele do banco de trás relaxaram e voltaram para sua quietação e silêncio. O carro ficou atravessado na pista. O muro... Bem... O suficiente pra conseguir abrir a porta.

Obviamente a primeira coisa em que pensei foi em sair do carro.

- Não saia. – Disse Diego.

-Por quê?

-Por que estão acontecendo coisas ao nosso redor neste exato momento fora deste carro.

- Que coisas?

- Efeitos.

- Apenas o encarei com descrença enquanto colocava um pé para fora.

- Não!

-Doutor... Você já parou para pensar como é um mundo de um inseto? Uma formiga, por exemplo? Assim, imagine o tempo que uma formiga gasta para andar dois metros de distancia, com seu tamanho mínimo e suas pernas curtas. Hum... Percorrer dois metros levaria provavelmente um 2 minutos, talvez ou mais. Agora, uma pessoa. Quanto tempo levaria para percorrer dois metros?

-Acho que um segundo.

-É...

-Foi assim que se sentiu? Do tamanho de uma formiga?

- Não doutor, eu estava exatamente do meu tamanho. Mas... Tudo estava a quilômetros de distância.

- Como assim?

- O carro que a pouco estava do meu lado, agora não passava de um ponto cinza no final de uma estrada que não parecia ter fim. Senti que estava surdo. Mesmo no silêncio da madrugada conseguimos ouvir algumas coisas não é? Grilos? Música de bar? Nada. Olhei para minhas mãos e vi uma poeira verde escura saindo da ponta dos meus dedos.

-Estranho... Isso se reflete à sensação atual de ver tudo pequeno?

-Não, não. Isso é outra coisa.

-E como você se saiu dessa?

-Eu não saí. O “efeito” apenas passou.

...

(Agradeço a todos que leram e comentaram essa primeira parte.)

R Mikael
Enviado por R Mikael em 31/03/2010
Código do texto: T2170340
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