E se por acaso…
Uma vez eu li um livro que, entre outras coisas, informava que os antigos romanos não acreditavam em acaso e sim, no capricho dos deuses. Acreditavam os romanos que os homens nada mais eram que meras marionetes movimentadas por invisíveis cordões atados aos dedos desses caprichosos deuses. Porém, em outro livro eu li também que os deuses só existirão enquanto os homens crerem neles. Esse livro, racionalmente, era taxativo. Esses deuses, gregos e romanos, antigos, feneceram junto com a fé depositada neles. Pelo sim e pelo não, de vez em quando eu acendia uma vela para eles e fazia oferendas para um ser superior, que eu tenho convicção, sempre me orientou.
Quando ascendi, por um curto espaço de tempo eu tive a consciência cósmica, creio que consegui essa consciência por uns fugazes centésimos de segundos, mas foi o suficiente para perceber os eventos a seguir.
PRIMEIRO EVENTO:
Naquela manhã o dia demorou a clarear em São Paulo, a torrente de água que caiu sobre a cidade dava a impressão que o Rio Amazonas resolvera despejar parte de seu caudal sobre a maior metrópole brasileira. Por sorte, o táxi que ele pegara enveredara por uma rua secundária e o trajeto transcorria sem maiores atropelos. Ele estava satisfeito, feliz da vida, chegaria com bastante antecedência ao Aeroporto Internacional de Congonhas. O taxista garantira que conhecia todos os atalhos daquela parte da cidade. Porém, na viela transversal que dava acesso à Avenida Whashigton Luis, o motorista foi diminuindo a marcha, foi diminuindo e parou.
-Doutor, infelizmente o trânsito ali na frente está interrompido. Mas não se preocupe não, Doutor, vou dar a marcha ré e pego outra rua rapidinho.
Outros taxistas que conheciam a viela e que perceberam o transtorno também engataram a marcha ré. Outro taxista na ânsia de satisfazer o passageiro que prometera gorda gorjeta entrou em velocidade maior que o normal e bateu na traseira de um dos últimos da fila de carro. A testosterona atingiu níveis altíssimos, iniciou-se uma discussão, um deles sacou uma arma e o trânsito por aquela viela ficou parado por horas.
-Meu amor, aconteceu um lamentável imprevisto e temo perder o avião. Acho que não vou chegar a tempo ao aeroporto.
-Mas... Querido e o aniversário do Duquinha?
-Querida, por favor, avisa aos convidados que a festinha vai ser postergada por um dia.
-Está bem, Durval. Vou ver como é que eu vou contornar essa situação, mas ver lá, hem. Não vá atrasar ainda mais. Beijos.
SEGUNDO EVENTO:
O mecânico de máquinas pesadas pegou displicentemente uma estopa e limpou a mão suja de graça, enfiou-a no bolso traseiro e cuspindo no piso manchado de óleo da oficina falou para o colega ao lado:
-Meu camaradinha... Se num fosse aquela dor de dente de lascar o cano que tive ontem, com certeza a gente tinha aprontado essa caixa de marcha desse rolo compressor, ontem mesmo.
-Pois é... O engenheiro já ligou “fulo da vida”. E a essa hora da tarde. Quase noite, num dá pra levar a máquina até a obra. O trânsito ta de matar. O jeito vai ser sair da oficina de madrugada e sair cortando caminho pelas ruas da cidade. Fazer o quê, né?
-Tem razão. Sair da Rua Abunã em direção ao Trevo do Roque depois que começar a “pauleira” do trânsito... Mermão! Nem matando... Depois que começou as construção das Usina, o trânsito de Porto Velho virou um “tendeu”. Putasq’uiupariu!!!
TERCEIRO EVENTO:
O Lago Cuniã, no interior de Rondônia, amanheceu encoberto por uma densa neblina. De vez em quando o lago amanhecia assim, branco, como se uma nuvem caísse do céu, bem em cima do lago. Tonico Piaba sentou-se na velha cama de casal, olhou para a mulher pálida que ressonava na beirada da cama junto à parede e sorriu agradecido pelo verdadeiro milagre que o Dr. Afrânio fizera. A cirurgia fora longa, sofrida e de um sucesso absoluto. Maria da Luz convalescia com boas chances de recuperação total.
“Aquele Dotôr era cabeceira, pedra noventa mermo. Êta Dotôr porreta! Mesmo trabaiando num hospital púbrico, o sujeito fez de tudo, o possíver e o impossíver pra sarvar Maria da Luz. Pro mode mostrar agradecimento vou levar a galinha mais gorda e mais grande q’ieu tenho no quintal e intregar pra ele lá naquele prédio supimpa q’ele mora. Ora se vou..” Pensou Tonico Piaba.
O caboclo amarrou a gorda galinha na traseira da bicicleta e pedalou os dois quilômetros que separavam o sítio do ponto de ônibus. Iria deixar a bicicleta na casa do compadre Janjão. Tonico Piaba viajaria trezentos quilômetros, cento e cinqüenta de ida e cento e cinqüenta de volta, gastaria parte de suas escassas economias para ir a Porto Velho somente para demonstrar o seu agradecimento entregando a valiosa galinha - maior poedeira de ovos que existia em toda a Reserva Extrativista do Lago do Cuniã - para o Doutor Afrânio no imponente edifício residencial onde o médico possuía um apartamento.
QUARTO EVENTO:
Ele acordou tarde naquela manhã. A bateria do celular tinha acabado a carga, provavelmente durante a madrugada. Ele fora dormir tarde, e num impulso repentino ligara para a mãe mais ou menos meia-noite ou uma hora da madrugada. Esquisito, sentira uma saudade atroz de Dona Clara, ainda bem que pessoas idosas têm dificuldade para dormir. Falara um bom tempo com a mãe e depois desligara a televisão, apagara a luz e pegara no sono. Resultado, dormira tarde, perdera o horário do primeiro ônibus e se não corresse iria perder o segundo ônibus. Justamente naquele dia em que o novo chefe faria a primeira reunião. Segundo ouvira falar, o cara tinha fama de bravo, na certa não iria gostar de ver um membro da equipe chegando atrasado. Ele estava tão apressado ao atravessar a avenida que não viu uma pequena saliência no asfalto, tropeçou e caiu de gatinhas no meio da avenida. A última coisa que lembrava era de uma pancada muito forte e de mais nada.
QUINTO EVENTO:
A despeito de ter atrasado um dia, a festa de aniversário do Duquinha foi um sucesso. Quando os últimos convidados deixaram o apartamento, o relógio digital na cabeceira da cama do garoto piscava o mostrador luminoso indicando que era dez e meia da noite. Dona Ângela após se despedir do último e renitente convidado deu instruções para a empregada retirar os restos de salgadinhos da sacada, limpar a sala de estar e depois ir dormir também. Dolores, a empregada, limpou a sala e como estava muito cansada resolveu ir dormir. Limparia a sacada no outro dia, bem cedinho, antes da patroa acordar. Nem precisava se preocupar, Dona Ângela só acordaria lá pelas onze da manhã mesmo. Pensou.
No dia seguinte, no apartamento vizinho ao de Dona Ângela, a esposa do Doutor Afrânio falava para a empregada:
-Era só o que me faltava, Ritinha. Ontem à tarde, depois que você foi embora, um estranho deu o maior vexame na portaria do prédio.
-Que foi que aconteceu patroa?
-Você não vai acreditar... Acredita que um homem insistiu por que insistiu com o “Seu” Manoel, o porteiro, para ele deixar o maluco do homem entregar uma galinha para o Afrânio. Para o homem parar com escândalo fui obrigada a aceitar a bendita da galinha em nome do Afrânio. O que é que eu vou fazer com uma galinha aqui no apartamento? Já sei Ritinha... Quando você for para a sua casa você vai levá-la. O bicho está preso lá na área de serviço; pegue um barbante ou qualquer coisa que o valha e prenda os pés da galinha e quando terminar o seu expediente leve-a com você.
Ritinha olhou para a patroa, sorriu, abriu uma gaveta, pegou um rolo de barbante e se dirigiu para a área de serviço.
Durante a noite a galinha soltou um dos pés que estava preso. A porta da área de serviço estava entre aberta. A galinha entrou pela cozinha, passou pela sala; a porta para a sacada também estava aberta. A galinha voou para o parapeito da sacada e de lá voou para a sacada do apartamento vizinho e ficou ciscando em cima da mesinha de centro bicando os restos de salgadinhos da festa de aniversário do Duquinha.
Quando Ritinha entrou na área de serviço ouviu um grito no apartamento vizinho. Reconheceu o tom de voz da colega que trabalhava no apartamento ao lado, correu para a sacada e viu uma cena inusitada. A empregada do apartamento vizinho correndo pela sacada perseguindo uma galinha. De repente a galinha voou pelo espaço e despencou do décimo quinto andar.
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Um homem se aproximou do balcão da padaria pediu um pingado e olhando pela janela viu uma aglomeração de transeuntes na quadra seguinte à da Padaria Roma, na Avenida Calama, e perguntou ao atendente:
-Amigo... Que foi que aconteceu ali?
-Cara! Você não vai acreditar. Chegou um freguês aqui dizendo que uma galinha apareceu do nada e bateu no pára-brisa do ônibus. O motorista quase perdeu o controle e quando estava conseguindo dominar o veículo um sujeito tropeçou numa saliência do asfalto e caiu de quatro na frente do “busão”. É mole? E o inacreditável é que essa saliência apareceu hoje de manhã, depois que um rolo compressor passou pela avenida.
EPÍLOGO:
Os desígnios que regem as peças do xadrez cósmico são incompreensíveis para os comuns dos mortais, os não iniciados, você incluído.
E se por acaso não tivesse caído um dilúvio em São Paulo e o Durval não tivesse perdido o avião, com certeza, a festa do Duquinha teria ocorrido na data aprazada e aquela galinha não teria ido comer os restos de salgadinhos e uma peça do xadrez não teria se deslocado.
E se por acaso a Maria da Luz não tivesse sobrevivido à cirurgia?
E se por acaso a mecânico não tivesse contraído o vírus da gripe?
E se por acaso eu não tivesse dado uma prosaica topada?
Hoje, eu teria cedido ao impulso que me acomete há anos. Eu teria atendido mais uma vez à ordem dele. Afinal... Eu sou o escolhido. EU SOU UM SERIAL KILLER.
PS.:
Letícia, uma universitária moradora do Bairro Tucumanzal, enquanto esperava o ônibus comentou com a colega da faculdade que digitava as teclas do celular concentrada em um joguinho qualquer:
-Amiga... Acordei com um aperto no peito, uma angústia... De repente, do nada, me veio uma paz... Tipo assim, sensação de alívio... Entende? Que coisa, eu hem?
-Que foi que você falou?????
-Nada não... Besteira minha.